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SANEANDO URNAS: SOBRE A LEI DA FICHA LIMPA
Para Tito, já ausente mas sempre presente.
Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2011
À nossa Carta Magna de 1988 – alcunhada de "Constituição Cidadã" –, cuja elaboração viu-se engolfada pelo espírito otimista e progressista que marcou a reconquista da democracia no Brasil, devemos a possibilidade de propormos leis independentemente da ação de congressistas.
Conquanto tal abertura à iniciativa popular não tenha sido utilizada com frequência, contam-se dois exemplos dos mais relevantes decorrentes da atuação de eleitores que se serviram de tal dispositivo constitucional. Lembramos aqui da Lei 9.840, aprovada em 1999, a qual pune com cassação do mandato o político que tenha comprado votos, bem como da Lei Complementar 135/2010, a qual ganhou a feliz denominação de Lei da Ficha Limpa.
Àquela primeira credita-se a cassação de centenas de políticos, entre os quais governadores e prefeitos. Já a Lei da Ficha Limpa, como sabido, prevê o impedimento dos que tenham sofrido penalidades impostas pela Justiça. Sua aplicação plena ainda está a depender de julgamento do Supremo Tribunal Federal, mas, de toda sorte, sua mera existência representa uma largo passo na direção do saneamento de uma vida política vincada profundamente por séculos de impunidade.
Instigada por tal lassidão, uma variegada fauna de marginais sociais procura albergar-se sob o manto da democracia e dos direitos de cidadania elegendo-se a postos do poder Legislativo; entre eles encontram-se desde larápios e criminosos comuns até celebridades medíocres cuja notoriedade se deve a excentricidades aberrantes. Na verdade, em sua maioria, os integrantes dessa súcia podem ser vistos como trânsfugas ou trastalhões que, aos desvãos, preferem o fulgor dos holofotes que dimana das casas legislativas; tal audácia, como sabido, permite-lhes obstar a aplicação de penalidades reclamadas pela Justiça.
Tal fenômeno, embora deletério com respeito ao funcionamento pleno e são da vivência política, deriva, em última instância, das próprias bases que informam e enformam os direitos democráticos. Assim, é de se esperar que a remoção de tal abastardamento da democracia não se dê automaticamente e enfrente forte resistência de interessados e interesseiros, sobretudo entre nós, vitimados por odiosa tradição clientelista e patrimonialista. A superação das práticas ora denunciadas exigirá, pois, um conjunto complexo de processos e ações, cuja efetivação certamente demandará um largo espaço de tempo.
Três dos aludidos processos apontam na mesma direção e distinguem-se por seu inter-relacionamento e pela morosidade demandada até a ocorrência de seu estabelecimento integral. Pensamos aqui, antes do mais, na universalização e aprimoramento da educação formal a qual, como é de conhecimento de todos, padece, em todo o território nacional, de flagrantes carências.
À consecução desse pressuposto basilar somam-se a educação cívica e o refinamento cultural de nossa população; se este último mostra alguns sinais de vida, já aquela primeira praticamente inexiste.
A completar a avançada tríade, acha-se a necessidade de haver uma busca sistemática de informações por parte do corpo eleitoral. É imprescindível não só o conhecimento do passado dos postulantes a cargos eletivos, mas também o acompanhamento contínuo do desempenho dos políticos eleitos.
Emprego para os que desejem trabalhar e bom atendimento nos serviços públicos em geral representam elementos indispensáveis e complementares aos arrolados acima, pois, assim como a educação cívica, operam de sorte a garantir a independência da população e dos eleitores com respeito a eventuais "ajudas" oferecidas por amealhadores de votos cativos. Sobre esses temas vale considerar, ainda que ligeiramente, alguns aspectos de nossa formação histórica.
Como repisado pelos mais diversos autores, no Brasil instituiu-se, desde seu nascedouro moderno, o chamado patrimonialismo, sempre acompanhado pelo clientelismo; assim, para a massa menos abonada abriu-se o apelo aos "coronéis", tenham eles a cara de proprietários de terras, de políticos ou mesmo de membros do clero. Nessa esfera, o objetivo perseguido é uma benesse qualquer: de uma ajuda do tipo do Bolsa Família a empregos públicos de baixa remuneração e pouco exigentes quanto ao preparo escolar. Já as camadas médias também se servem do mesmo expediente, socorrendo-se de políticos e amigos influentes para conseguirem boas colocações no emprego público, matrícula em escolas de superior qualidade para seus filhos etc. etc. Quanto às "elites" políticas e econômicas, a "troca de favores" é universal e generalizada.
Não sei até que ponto esse universo de favores continua a operar generalizadamente dessa maneira hoje em dia, mas até há pouco era assim que se procurava, em primeira instância, alcançar uma melhora das condições de vida.
Como se pode imaginar, tais modos de agir tendem a arrefecer tanto a luta por melhorias de caráter geral como atuam no sentido de fazer socialmente "aceitáveis" comportamentos absolutamente condenáveis por parte dos políticos e do poder executivo; pois, "com base neles poderemos alcançar nossos objetivos", pensariam os que pretendem apoiar-se na ajuda dos "donos do poder". Enfim, tento caracterizar aqui o quadro secularmente imperante entre nós, valendo ele, não só para as elites, mas também para a classe média e para as camadas menos privilegiadas.
Deve-se frisar aqui não estarmos a esposar a falsa ideia contida na afirmação de que "o brasileiro não sabe votar"; o problema a ser enfrentado fere a questão do "uso" emprestado pelo eleitor ao seu voto. Destarte, usá-lo para obter esta ou aquela vantagem pessoal, embora seja racional por parte de quem não dispõe de recursos maiores, representa a subversão dos direitos de cidadania; assim, o desvirtuamento das escolhas de caráter político deve ser enfrentado e excluído da vida pública.
No concernente à adoção de ações concretas visando a moralizar o poder Legislativo temos de contar não só com a presença dos próprios legisladores – os quais, diga-se, em sua grande maioria não abonam tais medidas –, mas, sobretudo, com a participação dos próprios eleitores e dos órgãos do poder Judiciário. Assim, se com respeito às regras restritivas quanto à despudorada e alucinante mudança de um para outro partido, coube papel de relevo ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal, a assim chamada Lei da Ficha Limpa decorreu da iniciativa popular, a qual ganhou tal fôlego que a impôs aos legisladores, sempre evasivos quando se trata de regular o poder colocado sob sua tutela.
Como vemos, por sua liberalidade e pela amplitude dos direitos que garante, a democracia pode, eventualmente, dar guarida a oportunistas; tal abertura exige, pois, a atenção permanente dos eleitores, da vigilante mídia, dos guardiães da aplicação estrita das normas constitucionais e dos poucos legisladores bem-intencionados.
A nosso ver, portanto, não se deve emprestar a este ou àquele fator ou sujeito o papel de protagonista das mudanças desejadas com vistas a alcançar-se um padrão superior no âmbito de nossa vida política; tal patamar só será atingido dada a concorrência de um conjunto de atores cuja atuação deve dar-se em distintas esferas da vida social e política na nação.
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