2.6.04



SENHOR DEUS DOS DESGRAÇADOS...


Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2004



"Quando vi na TV as imagens de uma idosa
palestina de joelhos em busca de seus
medicamentos, remexendo nos escombros de
sua casa [destruída pelos soldados israelenses],
eu me lembrei de minha avó, que foi morta
pelos nazistas durante o Holocausto."
(Yosef Lapid, ministro da Justiça de Israel,
Folha de S.Paulo, caderno Folha Mundo,
p. A 8, 24/05/2004).



Embora o ministro Lapid tenha afirmado explicitamente que não compara Israel aos nazistas, tomo a liberdade de dizer que suas declarações – as quais, por sua honestidade e desprendimento, enobrecem e dignificam os judeus e o Estado de Israel – compelem-me a externar uma impressão a qual guardo comigo há já algum tempo; segundo penso, uma parcela significativa de sionistas mostra-se disposta a aceitar a adoção, por parte de militares e políticos israelenses, de práticas nazistas iguais às que vitimaram milhões de judeus. Embora não seja seu formulador, mesmo porque ela o precede, tal perspectiva tem no primeiro-ministro Ariel Sharon, a meu ver, um de seus mais conspícuos adeptos.

Antes de avançar nestas considerações cumpre-me consignar que o sofrimento infligido por séculos aos judeus atuou sobre mim de sorte a levar-me a não expressar até o momento as opiniões aqui enunciadas; no entanto, em respeito a essa minha profunda reverência àquela perseguição ignóbil, vejo-me obrigado a pronunciar-me, como mero ser humano, contra a política criminosa implementada, sistemática e metodicamente, pelo aludido primeiro-ministro, política esta que assumiu em Rafah, na faixa de Gaza, um caráter absolutamente inaceitável. Como bem asseverou o ministro Lapid, a ação ali desenvolvida pelo Exército de Israel "não é moral, humana nem conforme à ética judaica" (idem, ibidem).

As proposições e a política defendidas por Ariel Sharon, bem como a atuação do exército por ele encabeçado, correspondem a uma forma de fundamentalismo sionista (1) – de há muito existente – colocada à margem da história e frontalmente contrária ao pensamento humanista que, de maneira lenta, embora conseqüente, tem feito avançar positivamente o relacionamento entre os homens, as nações e os povos. Como todos seus homólogos – entre os quais, diga-se desde logo, coloca-se o terrorismo praticado por fundamentalistas islâmicos (2) –, tal forma bárbara de sionismo deve ser repudiada por todos os que, independentemente de qualquer qualificação, almejamos a convivência fraterna e solidária entre todos os seres humanos.

De outra parte, se a hipótese aqui aventada estiver correta, impõe-se a verificação de estarmos em face de duas formas de fundamentalismo – o sionista e o islâmico – absolutamente antagônicos, os quais, portanto, não chegarão, espontaneamente, ao entendimento capaz de assegurar a coexistência pacífica de duas nações livres e soberanas: o Estado de Israel e o Estado Palestino. (3) Assim sendo, por mais remota que possa parecer a possibilidade de se alcançar uma tal solução, é preciso reconhecer a necessidade da presença, na região, de uma força militar internacional a qual, interpondo-se entre os litigantes, venha a garantir as condições de não-beligerância indispensáveis à emergência de um clima de paz do qual resulte, num futuro que ainda não se pode divisar, o estabelecimento de um acordo de paz equânime e definitivo entre israelenses e palestinos.

Um fato dramático associado a esta proposta está em que uma grande parte dos analistas, entre os quais posta-se a parcela majoritária dos que a vêem como a "única solução inteiramente eficiente para o problema israelo-palestino", concorda com a conclusão de ser praticamente impossível a sua efetivação. Israel não aceitaria a presença de forças estrangeiras em sua área de influência, os EUA não endossariam nem promoveriam essa intervenção e a ONU, mesmo se pudesse dispensar o veto dos EUA, não teria força bastante para impor tal ingerência na região. Vale dizer, a solução não o é, porque dificilmente será adotada.

As evidências apontam, pois, na direção da continuidade da situação atual: um estado de guerra sem fim, com um enorme número de vítimas inocentes e em que todos são perdedores. Isto tudo, por via de regra, executado em nome de um mesmo Deus, muito propriamente visto pelo poeta e por cidadãos comuns como o Senhor Deus dos desgraçados.


NOTAS
(1) Os adeptos do assim chamado fundamentalismo sionista distinguem-se pela aceitação integral dos seguintes preceitos: a) convicção de integrarem um grupo que, por escolha divina, define-se como "eleito" e, como tal, superior aos demais segmentos religiosos e/ou povos e/ou nações componentes da humanidade; b) convicção de que o Estado de Israel tem direito incondicional aos territórios reivindicados por israelenses; tal direito justifica a ocupação dessas terras independentemente do assentimento de seus ocupantes efetivos, os quais, não só estão obrigados a cedê-las, mas, em caso de resistência, podem ser expulsos mediante o emprego da violência armada de caráter civil ou militar; c) não acatamento de resoluções da ONU que sejam entendidas como contrárias aos interesses israelenses; o mesmo valendo com respeito a recomendações efetuadas por qualquer nação ou grupo de nações; d) em resposta às ações de força dirigidas contra o Estado de Israel, israelenses ou judeus é lícito o emprego de toda e qualquer forma de retaliação, mesmo se dela resultar a perda de bens materiais ou da vida de pessoas não comprometidas direta ou indiretamente com as aludidas ações.
(2) No respeitante aos israelenses, os fundamentalistas islâmicos – para os quais o Estado de Israel é inaceitável e tem de ser destruído – tomam como lícita toda e qualquer ação capaz de causar dano a Israel ou acarretar ofensa física ou a morte de israelenses ou de judeus; isto independentemente de qualquer tipo de qualificação ou consideração.
(3) Por ora, os grupos favoráveis à conciliação e à paz, encontráveis tanto entre os Palestinos como em Israel, infelizmente não detêm força política bastante para tornar efetiva a adoção de suas propostas e soluções.