14.5.05

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COLCHA DE RETALHOS: OPINIÕES NÃO SISTEMÁTICAS SOBRE A CIÊNCIA DA HISTÓRIA
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2005
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I. Uma primeira aproximação. Sobre o caráter "revolucionário" da ciência da História.
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Num primeiro momento a história visou a fixar o passado; a este respeito as palavras de Heródoto ao justificar sua obra seminal são paradigmáticas. Num segundo momento, os historiadores passaram a ordenar, concatenar e tentar explicar os fatos do passado, buscando, ademais, determinar as leis gerais sobre o evolver da história humana. O conhecimento assim produzido culminou, num terceiro lapso, na obra de Hegel e, particularmente, na de Marx. A contar destes dois autores, a história da humanidade passou a ser vista como um caminhar da "necessidade" para a "liberdade"; vislumbrou-se, assim, o fim da história "natural" do homem. A partir de tais obras o futuro pôde passar a ser pensado como uma construção conscientemente dirigida pelo espírito humano. Vale dizer, anuncia-se que o homem pode deixar de ser conduzido por "leis cegas" da natureza para tornar-se senhor consciente de seu futuro.
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Com a obra de tais autores a história como ciência, a nosso juízo, viu-se superada, pois já teria cumprido seu papel ativo no sentido do estabelecimento de uma visão teórica na qual se insere a perspectiva de um futuro a ser "posto", conscientemente, pelo homem.
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Neste quarto momento o conhecimento histórico assume o que tenho chamado de caráter "construtivo", "formativo" ou "constitutivo" de cidadãos abertos ao novo, às mudanças, à diversidade e aptos a perseguirem, com base na democracia, a instituição de um mundo dominado pela liberdade, pela fraternidade e pela igualdade. O papel – ou o caráter – "revolucionário" da ciência da História foi, pois, superado, agora ela atua no sentido da formação de homens capazes de lutarem por uma nova forma de sociabilidade.
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II. Contemplando a história de uma perspectiva histórica.
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Pode-se advogar ser a curiosidade um elemento do perfil humano o qual foi selecionado no processo evolutivo das espécies. Os avanços e conquistas devidos à curiosidade são óbvios o bastante para dispensar qualquer comentário adicional.
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Presente em nossa conformação mental, tal predicado pode dirigir-se aos mais variados objetos; alguns deles serão "úteis" e "produtivos", já outros, por seu turno, embora possam ser tomados como "construtivos", não guardam maior afinidade com o mundo da produção de bens materiais ou com as atividades enquadráveis como serviços indispensáveis ao bem-estar material dos seres humanos. Nesse sentido, tais objetos podem ser vistos como "fúteis"; nesse caso a "curiosidade" dobra-se sobre si mesma e o resultado de tal processo é o exercício da "curiosidade pela curiosidade".
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Segundo penso, vastas áreas do conhecimento histórico, depois das formulações de Hegel e de Marx, tornaram-se um objeto com este último caráter; trata-se, na verdade, de um mero hobby, vale dizer, é tão útil e essencial como um hobby e, como tal, pode ser definido, igualmente, como algo supérfluo e acessório. Avançando nesse caminho da superfluidade à qual podem ser associadas muitas áreas concernentes ao estudo do passado, podemos nos permitir tomá-las como formas ingênuas de "voyeurismo".
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Como já assinalei algures, o papel ativo do conhecimento histórico como elemento indispensável à compreensão da vida social da humanidade de sorte a lançar luz sobre a necessidade e a possibilidade de revolucioná-la encerra-se com a obra de Marx, a qual propõe a superação da história "natural" do homem; caso tal superação venha efetivamente a ser estabelecida, a história da humanidade ver-se-á colocada em novo plano, pois, terá de ser vista como história posta conscientemente pelo homem e não mais como decorrência de forças externas à nossa consciência.
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A nosso ver, o papel crucial desempenhado pela ciência da História na elaboração da visão de mundo formulada por Marx pode ser utilizado para compreendermos as palavras pejorativas deitadas por Hegel: "Lo histórico, es decir, lo pasado, como tal, ya no es, está muerto. La tendencia histórica abstracta a ocuparse com cosas muertas se ha propagado muchísimo en la época moderna. Tiente que estar muerto el corazón, cuando se quiere encontrar satisfacción en ocuparse con lo muerto y con los cadáveres. El espíritu de la verdad y de la vida vive solamente en lo que es (...) la posesión de los conocimientos simplemente históricos es como la posesión legal de cosas que no sirven para nada." (HEGEL, J.G.F. Historia de la Filosofía. Argentina, Ed. Aguilar, 1971, p. 88).
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Da perspectiva que nos foi aberta pela aludida visão de mundo, é possível afirmar não ser a ciência da História, após superada, uma produtora de "corações mortos", mas, sim, que passou a ocupar uma nova função com respeito à formação do homem; assume o conhecimento histórico, assim, o que tenho chamado de caráter ou papel "construtivo" no processo continuado de refinamento do espírito das novas gerações.
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III. Sobre o caráter "construtivo" da história.
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O papel construtivo da ciência da História – e, em termos mais genéricos, dos estudos votados ao passado da humanidade – é, sobretudo, civilizatório, forjador da cidadania, vale dizer, de espíritos abertos para mudanças e respeitadores da diversidade. A exposição do homem ao conhecimento do passado, por via de regra, habilita-o superiormente para a vivência democrática, pois tal experiência alarga seu horizonte cultural, o põe em contato com os múltiplos caminhos percorridos pela espécie humana, evidencia a multifacetada riqueza das diferentes culturas que empolgaram, em distintos momentos, os mais variados povos e lhe proporciona os elementos indispensáveis para que lhe seja possível formular sua própria opinião com respeito às bases sobre as quais se assentam sua formação e sua particular visão de mundo; permitindo-lhe, ademais, definir suas relações com seu meio, sua geração e todos os demais humanos.
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Como avançado, o caráter do saber histórico é essencialmente "construtivo" ou "formativo" e não "produtivo"; como sabido, esta última função é integrada à formação do indivíduo mediante o domínio de outros ramos do conhecimento. Destarte, enquanto a História contribui para a "construção" do cidadão consciente, livre e capaz de pensar autonomamente, outros campos do saber atuam de sorte a capacitar as pessoas para a vida produtiva, para a elaboração de bens e serviços, daí o caráter aqui chamado de "produtivo" de tais áreas das ciências e das técnicas.
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Ao lado da História alinha-se, por exemplo, a Filosofia, a qual, como aquela, só desempenha, mediatamente, uma função "produtiva", pois também se distingue por seu papel eminentemente "construtivo", ou "formativo" se se desejar empregar uma expressão paralela.
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IV. À moda de Alberto Caeiro.

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Este texto restaria incompleto se não enfatizássemos um importante aspecto do conhecimento histórico que não ficou devidamente explicitado nas ponderações expendidas acima.

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A meu ver é preciso atentar para o papel instrumental que o conhecimento histórico, e as ciências sociais em geral, estão chamados a desempenhar na formulação de projetos políticos destinados a conduzir a ação das pessoas que pretendam promover a superação das condições imperantes em dado momento ou sociedade e a lutar pelo estabelecimento de um novo tipo de sociabilidade. Neste caso, o conhecimento histórico não pode ser tido como o exercício de um hobby, pois recupera seu papel ativo (instrumental como avançado acima) no sentido de fornecer elementos indispensáveis à superação do statu quo.
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Em tal circunstância, evidentemente, a História, como campo do saber, não se fecha em si mesma, pois se vincula imediatamente às demais ciências sociais e, sobretudo, à ação política; trata-se, como visto, de um saber dirigido imediatamente à transformação das condições socioeconômicas e políticas dadas. Trata-se, ademais, de um conhecimento vinculado a condições concretas específicas de uma nação, um grupo de nações, ou de um particular momento da história da humanidade. (1)
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Tal raciocínio pode nos levar ao reconhecimento de distintos "níveis" ou planos do conhecimento histórico. Um primeiro, mais geral, que teria servido às formulações de Hegel e, sobretudo, às de Marx. Um segundo, preso a condições concretas, próprio à formulação de programas de ação política. E, por fim, um terceiro; esse sim, dominado pela curiosidade difusa sobre o passado, plano este assimilável ao exercício de um hobby cujos resultados cumpririam as funções "construtivas" ou "formativas" advogadas nos tópicos iniciais deste texto.
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NOTA
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1. A meu juízo seria muito estimulante considerar as obras mais expressivas de Caio Prado Júnior e de Celso Furtado à luz dessas afirmativas. Para alguns, eles estariam, tão-só, a escrever particulares "histórias" do Brasil; não obstante tais opiniões, creio que essas obras vão muito além do "fazer história", pois definem-se como verdadeiros programas de ação votados às mudanças que esses autores julgavam necessárias para o estabelecimento, no Brasil, de uma sociedade menos excludente e mais democrática.
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