22.5.04


LUIZ INÁCIO, O PEQUENO

Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2004



Impõe-se o reconhecimento de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os integrantes dos escalões superiores de seu governo, assim como as lideranças e a alta cúpula dirigente do Partido dos Trabalhadores assumiram definitivamente uma postura antinacional e estritamente subordinada aos interesses do capital financeiro e especulativo. Correlatamente, foram esquecidas as mudanças sociais e econômicas com as quais o PT comprometera-se desde sua fundação.

Ao que tudo indica, o PT – sem a menor pressão de seus oponentes reais, mas talvez levado pela construção elaborada pela própria direção do partido de um poderoso adversário imaginário – trocou suas bandeiras históricas pela mera permanência no poder, o qual é exercido passivamente sob o lema da busca de quiméricos equilíbrios na órbita econômico-financeira e no âmbito fiscal. Destarte, o atual governo define-se, como fartamente documentado pelos críticos das mais variadas cores, como um executor simplório da política econômica de feitio neoliberal implementada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

A meu ver, defrontamo-nos com dois processos paralelos e inter-relacionados. Por um lado, testemunhamos a degeneração de um partido que, ao empolgar o poder político máximo do país, deixou de lado seu passado e se colocou como objetivo precípuo simplesmente manter-se no comando, gozando das benesses de tal posição sem tomar medidas para efetivar as propostas formuladas no correr de sua existência. Por outro, observamos a explicitação das carências de um presidente saído das fileiras sindicais e sobre o qual quase toda a nação fez repousar seu anseio por uma vida mais digna, justa e igualitária.

Com respeito ao presidente, resta evidenciado que Luiz Inácio Lula da Silva é apenas uma ficção, uma entidade tida por muito tempo como mítica, mas que se provou, tão-somente, uma grosseira mistificação.

Na verdade, o político Luiz Inácio da Silva, do qual hoje conhecemos as limitações e o despreparo, não conseguiu incorporar as qualidades do dirigente operário Lula: firmeza, clareza de propósitos e conseqüência. Infelizmente para nós, seus eleitores, Lula é visto por Luiz Inácio como um bravateiro irresponsável já desaparecido e devidamente esquecido; até nisso este infeliz presidente espelhou-se em seu predecessor.

De outra parte, este drama pessoal vivido pelo presidente da República tem, sobre a vida nacional, duas projeções da maior relevância. A primeira, de caráter social, exprime-se tragicamente no desemprego de milhões de pessoas. A segunda, de fundo político, e igualmente danosa, se expressa na recuperação da figura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, cuja ação irresponsável à frente de dois mandatos vê-se justificada pela atuação desvairada do governo atual. Neste sentido, pode-se ver em Luiz Inácio da Silva o grande eleitor da candidatura, já em andamento, de FHC, cuja insofreável volúpia pelo poder é universalmente reconhecida.

Quanto a nós, simples eleitores, consolamo-nos com a certeza pouco reconfortante de havermos sonhado o bom sonho e de termos escolhido, acertadamente, o frágil candidato Luiz Inácio, imaginando que estávamos a eleger o líder metalúrgico Lula.


1.5.04



NO REMOINHO DO PODER*

Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2004



Para muitos de nós, o comportamento dos norte-americanos denuncia uma atitude de superioridade e arrogância decorrente da prepotência característica do dominador assentado numa base material e técnica colocada acima da prevalecente no resto do planeta. Segundo tal modo de ver, os norte-americanos também superestimariam seus valores éticos e políticos, tomando-os como situados em um patamar ainda não alcançado por nenhuma outra nação. Enfim, a soberba e a prepotência seriam típicas desse povo por muitos de nós considerado politicamente não sofisticado e culturalmente pouco refinado.

A meu ver, a visão aqui reportada padece do simplismo atribuído aos norte-americanos. Afora o assim chamado "americano médio", o qual poderia ser envolvido por sentimentos de superioridade injustificáveis, por via de regra lastreados em informações parciais ou distorcidas, existe nos EUA uma elite cultural e política que não se deixa levar por argumentos falaciosos e ligeiros.

É preciso, pois, aprofundar a consideração desse "sentimento de superioridade" a fim de se identificar seus determinantes efetivos, os quais se enraízam na cultura americana não sendo, portanto, meros elementos superficiais de uma postura simplesmente preconceituosa, da qual é acusado o aludido americano mediano.

A meu juízo, antes de se dever a um pretenso "complexo de superioridade", a atitude em foco reflete uma preocupação extremada dos norte-americanos com os compromissos que historicamente sua nação assumiu com os ideais democráticos, com as garantias individuais dos cidadãos e com a defesa e preservação das liberdades de pensamento, organização, expressão e iniciativa. Lembre-se, aqui, que tal comprometimento viu-se fortalecido pela luta dos EUA contra o nazi-fascismo e a posterior disputa com a URSS. Impõe-se aos norte-americanos, pois, patentearem, básica e essencialmente no plano das idéias, sua devoção e respeito a suas sãs tradições. (1) Assim, em vez de exprimir um antipático "complexo de superioridade", a soberba da qual são tachados pode denotar a tentativa de fuga de um inescapável sentimento de inferioridade que os tomaria caso fossem obrigados a reconhecerem sua infidelidade às referidas tradições. Admitir tal inconfidência não só significaria rebaixarem-se ante si mesmos, mas, também, desmoralizarem-se definitivamente perante todos seus interlocutores internacionais. Assim, ao desgaste "psicológico" decorrente daquele rebaixamento, somar-se-iam as perdas políticas derivadas da corrosão da autoridade norte-americana no cenário diplomático mundial.

Dessarte, a fim de legitimarem, perante seus próprios valores democráticos, suas ações velada ou abertamente intervencionistas com respeito às nações não desenvolvidas – o que fazem pragmaticamente em serviço de seus interesses, mas com a alegação sempre presente de que obedecem àqueles valores democráticos –, as elites norte-americanas elaboraram um conjunto de argumentos político-ideológicos calcado nos dois elementos (2) básicos abaixo explicitados.

Com relação às nações subdesenvolvidas do terceiro mundo utilizam-se da tese segundo a qual elas não adotam seriamente os preceitos democráticos e de que nelas impera a corrupção, a ineficiência administrativa e a incapacidade gerencial; isto tanto no âmbito do setor público como na órbita da iniciativa privada.

Justifica-se, dessa forma, todo tipo de intervenção, bem como a adoção aberta da corrupção. Neste último caso estar-se-ia, tão-somente, a usar um instrumento do qual as sociedades "autóctones" servem-se larga e costumeiramente; assim, a corrupção, quanto útil aos norte-americanos, deixa de ser um ato ilícito para transformar-se, dado o movimento ideológico que opera tal metamorfose, num mero expediente mediante o qual se pretende, mais rápida e eficazmente, alcançar os objetivos perseguidos, os quais, por sua vez, já se acham justificados por atenderem aos interesses norte-americanos, interesses estes que sempre poderão ser referidos aos valores democráticos acima apontados. Quanto às demais formas de intervenção, cujo caráter pode ser político, econômico ou militar, vêem-se elas explicadas pela necessidade de se assegurar, em nações que não o fazem suficientemente, o respeito às liberdades e à democracia.

Já o segundo elemento básico ao qual fizemos menção, diz respeito às nações desenvolvidas – basicamente as da Europa Ocidental – que, eventualmente, venham a suscitar algum reparo ou restrição às ações desenvolvidas pelos EUA. Neste caso os norte-americanos alegam que os governos de tais países demonstram-se incapazes de compreender as motivações dos EUA. Assim, os políticos das "nações amigas", dada sua incapacidade para alcançar os reais móveis norte-americanos, mostrar-se-iam desqualificados para julgar as medidas postas em prática pelos EUA ou por seus conglomerados econômicos. Como se observa, neste último caso o movimento ideológico transforma a crítica em incompreensão, eliminando, portanto, a necessidade de os EUA virem a reconhecer um eventual erro ou serem obrigados a admitir a adoção de meios que pudessem ser considerados ilícitos ou ilegais.

De toda sorte, em ambos os movimentos ideológicos aqui descritos (3) sempre comparece a inferioridade do "outro": incompreensão dos parceiros mais desenvolvidos; corrupção e incompetência dos mais atrasados. Justamente neste aspecto reside a fragilidade do arcabouço ideológico acima delineado, pois é esta aparente transposição imediata e grosseira de uma inconteste superioridade material para o plano político que faz os norte-americanos parecerem, aos olhos de muitos de nós, tão cinicamente confiantes e arrogantes. Na verdade, o mecanismo ideológico por eles utilizado nos parece tão elementar que antes de os tomarmos por cínicos, os consideramos ingênuos. Trata-se, não obstante, de um grupo de ingênuos dos mais perigosos, pois suas decisões e métodos chegam a ser absolutamente irresponsáveis; sirva aqui como exemplo a calamitosa ocupação do Iraque, ora a viver um de seus mais sangrentos capítulos.

Assim, independentemente de nossas opiniões e da justeza de nossas análises, duas idéias devem restar fixadas muito solidamente. Em primeiro, os norte-americanos são os dominadores, nós os dominados. Em segundo, o futuro próximo da humanidade encontra-se nas mãos deles; já quanto ao futuro mais longínquo, nada indica que nele venhamos a desempenhar algum papel de relevância. Em face disto, qualquer limitação que puder ser imposta aos EUA sempre será bem recebida, mesmo se vier a ser adotada sob os auspícios da desfibrada e desmoralizada Organização das Nações Unidas.


NOTAS

(*) Cumpre lembrar que a presente crônica foi escrita antes de virem a público as notícias referentes às torturas infligidas a prisioneiros iraquianos por soldados americanos e ingleses. Note-se, ademais, que as repercussões de tais notícias nos EUA, e em especial as dimensões de escândalo que ali elas assumiram, corroboram as idéias esposadas pelo autor deste artigo.

(1) Este apego dos norte-americanos a suas instituições democráticas, assim como com o simbolismo que as cerca, encontra-se tão fundamente firmado que, nos EUA, um golpe de Estado só pode se dar se transcorrer no âmbito da "legalidade". Foi isto que ocorreu no caso da eleição de George W. Bush à presidência da República. As condições conjunturais decorrentes da confusão havida nas apurações foram rapidamente entendidas e manipuladas pelo Partido Republicano de sorte a levar, mediante uma série de decisões judiciais, hábil e fulminantemente arranjadas, seu candidato, que perdeu nas urnas, ao poder supremo da nação. Tudo pareceu se dar dentro da legalidade e o golpe de Estado confundiu-se com um mero golpe de sorte.

(2) Como em toda construção ideológica, elementos efetivamente existentes servem de base às generalizações que passam a ocupar todo o espaço reservado ao real fazendo com que este último veja-se falseado por ser confundido inteiramente com apenas um de seus aspectos. Como já foi repisado à saciedade, o movimento ideológico dá-se, justamente, quando a parte, sendo identificada com o todo, toma o seu lugar e o torna inacessível.

(3) Tome-se, por sua notoriedade, a figura de Jimmy Carter como exemplo dos norte-americanos que não se deixam envolver pelos movimentos ideológicos aqui propostos.
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VERMELHO SOBRE CINZA NUM PALCO VAZIO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2004



Como tem sido fartamente anotado pela crônica política, o PT e o governo Luiz Inácio Lula da Silva mostraram-se despreparados para dirigirem a Nação e incapazes de coordenarem os planos sociais que tentaram implementar. Suas marcas são o desemprego, a queda de rendimentos, os juros elevadíssimos e a estagnação econômica.

Além disso, as promessas de campanha viram-se relegadas ao esquecimento e as lideranças petistas revelaram-se mal-intencionadas, pois distorcem os fatos, buscam encobrir notórias evidências e empregam métodos fisiológicos para alcançar fins políticos escusos.

De outra parte, alguns intelectuais que mantiveram seu apoio à nova orientação do Partido dos Trabalhadores criam verdadeiros arabescos teóricos e patéticos jogos de palavras com os quais pretendem justificar a ruptura com idéias que esposaram por décadas e com as quais erigiram um rico patrimônio ético e político, ora infelizmente abandonado.

De tais malabarismos pseudocientíficos fazem parte não só a proposição de categorias esdrúxulas e inaceitáveis, mas também o estreitamento indevido da discussão, de sorte a deixar de lado fatias inteiras da realidade histórica atual. Fatias estas cuja consideração faria saltar à vista a existência de caminhos alternativos de ação política e econômica, deliberadamente desprezados pelo atual governo.

Assim, nas divagações teórico-filosófico-pragmáticas dos governistas tudo se passa como se suas pífias ações fossem absolutamente irrecorríveis. Experiências como as da Índia, da China, de países do Leste Asiático e da própria Argentina -- colocada ao nosso lado e defronte de nossos narizes -- são descuradas totalmente e nem sequer merecem a mais ligeira menção.

Tal omissão é emblemática, pois, a par de revelar o privilégio total emprestado aos ditames da grande finança, denuncia a evidente intenção de falsear a realidade e ignorar as demais vias abertas ao enfrentamento da crise econômica e social com a qual nos defrontamos.

Politicamente, impõem-se três conseqüências imediatas de tal maneira de agir. Por um lado, a base de apoio popular do governo vai-se corroendo, paulatina, mas continuamente. De sua parte, os aliados políticos do governo Lula aumentam sistematicamente o "preço" cobrado pelo apoio emprestado às medidas que interessam ao Planalto. Por fim, a oposição vê-se amplamente fortalecida e as articulações para a sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva já se acham em pleno desenvolvimento, tendo Fernando Henrique Cardoso e José Serra como seus expoentes maiores.

Enfraquecido e paralisado, o governo federal vê-se, no momento, às voltas com movimentos grevistas do funcionalismo público, com as desacoroçoadas invasões do MST e com crescentes perdas entre a intelectualidade, a militância partidária e os formadores de opinião que o tomaram como o representante fiel dos desvalidos.

Enfim, como avançamos em crônica escrita em outubro de 2003, "do ponto de vista político-cosmológico, o governo Lula representa uma autêntica aberração física, pois começa a terminar antes mesmo de podermos observar seu início" (COSTA, 2003, Construindo o avesso do futuro).

Temos, assim, um presidente, um governo e um partido que conseguem aviltar os velhos, malbaratar crescentes contingentes das novas gerações e dar as costas para a imensa maioria dos trabalhadores.

No correr da última campanha eleitoral o medo irreal de uns poucos exprimia a esperança secular de quase todos. O governo eleito foi incapaz de despertar esperanças e incompetente para semear o medo, ainda que ilusório. Resta-nos exercer sobre o presidente da República a pressão política necessária a fim de fazê-lo efetivar os compromissos assumidos com a nação e com seu próprio passado de migrante e líder operário.
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