14.9.07

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DA POLÍTICA DESENVOLVIMENTISTA AO
CLIENTELISMO DE ESTADO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, setembro de 2007

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A existência dos blocos capitalista e socialista, os confrontos entre as nações capitalistas mais desenvolvidas, as imposições colonialistas e imperialistas, a negativa de se passar às nações periféricas as técnicas, conhecimentos e equipamentos necessários à industrialização, propiciaram a emergência, nestas últimas, já nas primeiras décadas do século XX, de propostas de programas econômicos nos quais previa-se como meta principal a modernização calcada na industrialização.
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A constituição de uma indústria de base, o estabelecimento da indústria de bens de capital e de consumo e o apoio aos grupos interessados em contribuir para o crescimento econômico marcaram fundamente as ações implementadas por muitos governos de distintos matizes ideológicos em várias regiões do globo. A industrialização confundia-se com a busca da autonomia política e econômica a qual, em alguns casos, chegou a ser exacerbada a ponto de fundamentar a perspectiva de ereção de uma vida socioeconômica nacional totalmente autárquica.
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De toda sorte, mesmo quando pensados em termos das elites dominantes e como uma "resposta" ao desafio das esquerdas adeptas de soluções socializantes, os projetos "desenvolvimentistas" supunham a integração à vida nacional dos segmentos populacionais economicamente excluídos, inclusive a assim chamada "população redundante", vale dizer, o numerosíssimo efetivo não necessário à reprodução do sistema econômico imperante, excesso populacional este que não se confunde com o exército industrial de reserva, pois a ele se soma. (1)
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Vê-se, pois, e o caso do Brasil é exemplar, haver, à época e no âmbito do pensamento econômico em foco, um estreito vínculo entre a solução das carências sociais decorrentes da exclusão – o enfrentamento da "dívida social" – e as proposições votadas à luta contra o subdesenvolvimento e pela modernização econômica das sociedades não integrantes do grupo plenamente desenvolvido composto pelas nações centrais. Não seria exagero afirmar que muitos políticos e analistas viam na industrialização a panacéia capaz de debelar todas as mazelas com as quais nos defrontávamos no meado do século XX. A expressão maior dessa forma de equacionar as adversidades e entraves socioeconômicos que nos afligiam encontramos nas teses da CEPAL e, particularmente, em algumas das obras de Celso Furtado, um dos mais conspícuos e respeitáveis intelectuais brasileiros. Quanto aos nossos governantes mais significativos, seria ocioso lembrar as figuras de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.
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Embora se possa considerá-la sonhadora, a tese acima exposta distingue-se pelo mérito de vincular umbilicalmente a industrialização, vista como fruto da ação política conscientemente formulada, e a superação dos graves problemas sociais dos quais ainda hoje somos presas. De outra parte, a face perversa de tal maneira de pensar e agir repousa no fato de ela servir para justificar a despreocupação dos governantes com medidas assistenciais capazes de minorar algumas das inúmeras privações de milhões de desassistidos.
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Impuseram os fados, no entanto, uma radical mudança nas condições acima descritas.
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À implosão do socialismo real e à generalização das políticas econômicas de corte neoliberal deve-se a emergência de profundas alterações na vida econômica de várias nações; nelas já não cabem as políticas e relacionamentos que vigeram até os anos 80 do século passado.
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A procura da autonomia econômica foi esquecida por parte de muitas nações subdesenvolvidas, seus mercados abriram-se à oferta internacional e os produtores internos perseguem, nos dias correntes, metas menos ambiciosas. Em muitos casos, passou a predominar a oferta de insumos básicos – como matéria-prima de origem mineral e bens primários agrícolas – dirigida aos mercados centrais ou emergentes (como os da China e da Índia, entre outros) ou às grandes corporações transnacionais, as quais, por seu turno, mostram grande interesse pela abundante mão-de-obra barata e precarizada existente na mais variadas nações do terceiro mundo. A par disso, como sabido, desenvolveram-se técnicas produtivas poupadoras do fator trabalho.
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Neste espaço globalizado viu-se inviabilizada, inteiramente, a possibilidade de se incorporar à vida econômica, mediante o desenvolvimento industrial relativamente autônomo, os volumosos contingentes de despossuídos acima referidos. Correlatamente à impossibilidade de se garantir a absorção produtiva desses efetivos populacionais, emprestou-se ênfase maior às ações de caráter assistencialista. No Brasil, o exercício dessas últimas tornou-se claro ao tempo do governo FHC; nele, o assistencialismo mostrava-se, tão-somente, como mera ajuda aos mais necessitados, sem esperar-se destes beneficiários nenhum retorno de cunho político.
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Fica visto, pois, que, no mundo globalizado e para várias nações, a solução das insuficiências sociais deixa de ser pensada em termos de crescimento industrial e não pode ser enfrentada com base na geração de vasto número de empregos. Enfim, a relação entre resolução de questões sociais e vida econômica mais dinâmica rompe-se. Assim, a dívida social passa do campo econômico ao assistencial, com isso abre-se a possibilidade da manipulação política das práticas assistencialistas.
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Como avançado, tal manipulação, entre nós, não se deu de pronto. Ela veio a ser "descoberta" e conscientemente empregada quando já ia adiantado o primeiro mandato do atual presidente da República. Assim, em crônica de 2006, na qual tratava da crise que se abateu sobre as principais lideranças petistas devido à revelação dos crime sobre os quais se assentou o escândalo do "mensalão", dizia eu: "Como bem lembram os analistas políticos a política assistencialista desenvolvida há anos, mas amplamente incrementada pelo atual governo, chegou efetivamente às bases mais carentes da massa da população brasileira dela recebendo a devida resposta, qual seja, o apoio à reeleição de Luiz Inácio da Silva. O presidente foi conduzido a tal condição pela reação por ele oferecida à crise gerada pelos desmandos e crimes cometidos" por alguns "quadros do PT. Como sabido, o presidente da República, além de aproximar-se do 'povão' e a este dirigir seu discurso em busca de um escudo que o resguardasse, acelerou e ampliou os programas de teor assistencialista – necessários e indispensáveis na atual quadra, diga-se com firmeza – de sorte a fazê-los, de fato, alcançar um grande número de famílias extremamente necessitadas. (...) as pesquisas de opinião logo apontaram o quão frutífera é tal forma de atuação reforçando a determinação presidencial de alargar aqueles programas e funcionando como o combustível que tem alimentado a empáfia e a segurança demonstradas por um governante moralmente falido." (COSTA, 2006a). E, em outro escrito, também de 2006, acrescentava: "O respaldo emprestado ao atual presidente por numerosa parcela do eleitorado de baixa renda proporcionou uma visão mais clara de um movimento que se dava nas entranhas da sociedade brasileira. A assim chamada "voz do povo" estava a liberar-se de suas peias históricas e, caminhando por si, pronunciava-se favoravelmente à continuidade da política assistencialista promovida pelo governo federal; como já consignei, viu-se tal política imediatamente ampliada com entusiasmo pelo governo central, criando-se, com isso, um verdadeiro 'Clientelismo de Estado.'" (COSTA, 2006b).
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Esse coronelismo de novo tipo, generoso por atender minimamente uma imensa massa de necessitados, carrega consigo, não obstante, aspectos dos mais deletérios, pois a reeleição do atual presidente da República demonstrou ser possível, com um porcentual mínimo do PIB, "comprar-se" a Presidência com base em políticas assistencialistas incapazes, de maneira isolada e sem enquadrar-se em um plano global para a economia nacional, de nos oferecer a almejada solução para os inúmeros problemas socioeconômicos que há tanto nos atazanam.
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As transformações aqui reportadas, como não poderia deixar de ser, não se deram num vazio político e econômico. Ocorreram, pelo contrário, num cenário o qual conheceu, além de algumas permanências, profundas alterações.
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Como sabido, a falta de propostas inovadoras na esfera econômica levou o atual presidente da República a dar seqüência linear às diretrizes postas por seu antecessor. Conservou-se, destarte, o clima adverso à difusão de projetos alternativos para criar-se um número maior de novos empregos.
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De outra parte, a crise vivenciada pelo PT serviu como indicador de que a parcela mais carente da população brasileira, justamente aquela para a qual se destinam os programas assistenciais do governo federal, havia-se desprendido de sua secular dependência da assim chamada "opinião pública"; vale dizer, os despossuídos, embalados pelos benefícios recebidos, apoiaram firmemente o presidente da República e garantiram sua reeleição. (2)
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Assim, na órbita nacional deu-se a emergência de um novo protagonista: a massa de excluídos, com mais de quarenta milhões de pessoas, cujos interesses limitam-se ao recebimento de uns poucos reais e que, ao menos no curto prazo, dada sua "inorganicidade", só é passível de mobilização – de caráter passivo, diga-se – conduzida pelo atual presidente da República o qual, certamente, servir-se-á de sua liderança carismática para tentar eleger seu sucessor.
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Ademais, o "descolamento" dessa expressiva massa eleitoral, a qual passou a desempenhar um papel político relativamente independente, acarretou modificações das mais relevantes na cena política nacional. Entre tais transformações estaria o afastamento ou alheamento do atual presidente da República com respeito ao seu partido de origem. Teria sentido ele que, podendo contar com "seus" desvalidos, tornou-se menos dependente do apoio do PT; este, por sua vez, ao que parece, ensimesmou-se e evidencia não ter força bastante para superar sua postura de mero coadjuvante secundário do presidente da República. Já os demais partidos, os quais não conseguem dialogar com a assim chamada "voz do povo", pois nem sequer são ouvidos por ela, ficaram sem saber o que fazer ou propor; afora falas vazias dirigidas a um público inexistente restou-lhes, tão-só, "prometer" oposição implacável, buscar, sem êxito, obstruir propostas governamentais no Parlamento ou, como o fez o PFL, adotar uma denominação nova, atitude essa que exprime fidedignamente a vacuidade acima aludida.
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A tamanha imobilidade político-ideológica soma-se a inação econômica, pois o Brasil, como fartamente documentado por inúmeros analistas, viu acentuar-se a condição reflexa de sua economia, a qual, crescentemente, se mostra condicionada pelas vicissitudes dos mercados internacionais.
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Como a oposição com maior densidade de votos, e os próprios aliados do governo federal, nada têm de novo a propor ao corpo eleitoral, não parece haver, internamente, nenhuma vertente político-ideológica capaz de liderar a alteração do quadro acima delineado o qual, como já assinalei algures, revela-se altamente desfavorável ao pleno desenvolvimento sustentado da sociedade brasileira. Assim, e aqui retomamos uma das teses centrais de Celso Furtado, apenas um choque econômico externo poderá tornar menos sombrio nosso futuro próximo.
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NOTAS
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(1) Sobre o conceito "população redundante" veja-se: COSTA, 1993, p. 14.
(2) Com respeito a tal descolamento remeto o leitor às crônicas: COSTA, 2006a e COSTA, 2006b.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSTA, Iraci del Nero da. População redundante: tópico para a agenda do século XXI? Informações FIPE. São Paulo, FIPE, n. 153, p. 14-16, 1993.
COSTA, Iraci del Nero da. A voz do povo. Informações FIPE [boletim eletrônico]. São Paulo, FIPE, n. 309, p. 21-23, jun. de 2006a.
COSTA, Iraci del Nero da. Brasil: os mesmos atores e novos papéis? Informações FIPE [boletim eletrônico]. São Paulo, FIPE, n. 312, p. 25-26, 2006b.
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