29.5.06

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OPINIÕES DE UM LEIGO SOBRE LIDERANÇA CARISMÁTICA(1)
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2006
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Segundo creio, a liderança carismática resulta de um processo dialético iterativo mediante o qual é estabelecida a relação entre o líder e seus liderados. Ambos os lados são levados por fina sensibilidade; de sua parte, o líder em construção capta as necessidades e anseios de um dado coletivo, este último, por sua vez, ao aprovar a postura de seu "escolhido", reforça e torna a cada passo mais claros os aludidos anseios. Este reforço positivo, tão logo é apreendido pelo líder, leva-o a burilar sua imagem e a aprimorar seu discurso; isto se dá a cada "troca de informações" de sorte a aproximar, cada vez mais, as perspectivas dos liderados e as atitudes e posições esposadas pelo líder. Nesse sentido pode-se afirmar que o líder escolhe a quem liderar e, concomitantemente, é selecionado pelos integrantes da massa que conduz. (2) Nesta situação, o papel ativo da liderança está em identificar e explicitar palmarmente os anseios e necessidades do coletivo; em chamar seus comandados à ação, mobilizando suas vontades e fazendo com que transcendam seus eventuais interesses pessoais imediatos e, por fim, em tornar claros os caminhos a seguir a fim de serem alcançados os objetivos almejados.
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Esse contínuo rebatimento dos dois pólos estende-se por largo período de tempo no correr do qual se consolida a confiança na liderança e se firma a disposição de segui-la; esta, por seu turno, compromete-se cada vez mais fortemente com as necessidades e aspirações de seus apoiadores.
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Mediante tal processo erigem-se, a meu ver, os líderes capazes de fixar-se perenemente no espírito dos povos, sejam eles religiosos, políticos ou a personificação de outras expressões culturais marcantes de dada época, nação ou comunidade.
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A mais recente emergência de liderança carismática a se dar entre nós foi a de Lula, tornado presidente da República após longo e profícuo período de atividade sindical e política. Tal liderança, não obstante, para muitos de seus apoiadores não se fixou definitivamente, pois a figura do presidente Luiz Inácio da Silva viu-se desgastada por haver ele rompido com as idéias e compromissos assumidos no correr das décadas que antecederam sua chegada à Presidência.
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Essa ruptura foi violenta, pois se deu tanto no plano objetivo como no subjetivo. Este último, em particular, define-se como decisivo na desconstrução da imagem de uma liderança carismática, pois é tomada pelos seguidores como prova de que foram vítimas de um engodo conscientemente pespegado por seu ex-líder. Examinemos os dois planos acima apontados.
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Em termos objetivos não foram cumpridas as promessas feitas nem implementados os programas anteriormente aceitos como absolutamente prioritários. Ao contrário, as medidas adotadas pelo governante chocaram-se frontalmente com a linha programática perfilhada no passado.
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Embora da maior gravidade, este descompasso entre o que poderia ser tido como o desejado e o efetivamente possível não parece ser forte o bastante para desbancar uma liderança carismática; para tanto faz-se necessário um golpe com caráter subjetivo, condição esta que explicita a mentira conscientemente formulada, a qual será tomada pelos seguidores como inequívoca traição impingida por seu líder.
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O paradoxal da situação em que se dá a constatação da existência do embuste acima aludido está no fato de depender tal reconhecimento de uma confissão cabal, insofismável e inteiramente honesta da própria liderança em questão.
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Luiz Inácio da Silva, ao admitir serem apenas bravatas tudo que professou e com o que se comprometeu antes de eleger-se presidente, efetuou a referida confissão condenando-se, assim, como um fraudador que tudo fez visando, tão-só, a galgar o poder máximo da República.
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Esse seu lapso de plena sinceridade foi-lhe fatal, pois o desnudou perante muitos de seus apoiadores aos quais restou, apenas, uma atitude: a de repudiar tamanha desfaçatez. (3) Tal decisão vê-se, ademais, integralmente abonada quando se atenta para o comportamento de vários dirigentes máximos do PT, já afastados, e para as ações desenvolvidas no âmbito do governo por muitos próceres petistas, igualmente demitidos.
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NOTAS
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(1) Não me ocupo aqui da assim chamada liderança carismática patológica ou autocrática, no âmbito da qual o líder determina, solitária e unilateralmente, o que há de se fazer e anelar enquanto os conduzidos, sem questionamentos, simplesmente acatam, passivamente, a orientação ditada por seu guia. Penso num tipo de liderança carismática própria de um ambiente abertamente democrático e na esfera da qual não ocorre a manipulação absoluta dos liderados, os quais atuam de maneira consciente e racional.
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(2) Embora toda e qualquer forma de liderança carismática padeça de limitações óbvias e possa ser indutora de graves distorções da vivência coletiva, sua existência deve ser vista, antes de outras considerações qualificadoras, como um instrumento de luta de homens por suas metas e ideais e da comunidade por seus interesses e necessidades.
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(3) Como tive oportunidade de consignar no escrito intitulado A voz do povo, uma parcela substantiva dos eleitores do atual presidente continua disposta a dar-lhe apoio eleitoral; trata-se, em grande medida, de integrantes do segmento mais desvalido de nossa população, grupo este que tem sido atendido pela política assistencial do governo Federal. Apercebendo-se disso, o presidente da República, recentemente, ampliou tanto a faixa populacional apta a receber auxílio como a quantia a ser repassada a cada beneficiário.
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OBSERVAÇÕES SOBRE EQUÍVOCOS TERMINOLÓGICOS
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2006
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Vivenciamos nos dias correntes, como acusam vários analistas políticos, mudanças expressivas quanto às elites que têm galgado o poder central de muitas das nações latino-americanas.
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Conquanto tais alterações pareçam apresentar caráter original, têm elas sido contempladas, por via de regra, com a utilização de categorias de há muito fixadas pela literatura política e sociológica.
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Na medida em que tal instrumental analítico acha-se "comprometido" e fortemente marcado por realidades já superadas, mostra-se ele, a meu ver, insuficiente para descrever de maneira precisa as condições com as quais nos defrontamos no presente.
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Fala-se, assim, da ascensão de partidos ou de movimentos de esquerda ao poder; no entanto, ao serem qualificadas, tais "esquerdas" não guardam parentesco maior com o conceito já fixado do que vem a ser esquerda. Como pertinentemente afirmado por Paulo Arantes: "O que eu vejo nessa famosa América Latina que teria dado uma guinada para a esquerda é a consolidação de uma nova classe dirigente com apoio popular para extrair riqueza, renda e recursos da sociedade em outras bases. De um ponto de vista socialista e de esquerda, isso não tem nada a ver" (1). Sobre essa "nova classe dirigente", diz ele: "Nós temos [na América Latina] uma nova elite, que não sabemos o que é. No Brasil, passa por fundos de pensão, sindicados, gestores públicos, banqueiros, agronegócio e a burguesia exportadora. A burguesia nacional de Estado deve entrar no cenário se as Parcerias Público-Privadas forem tocadas de maneira inteligente, mas quem vai ganhar são os bancos, que devem fazer os financiamentos." (2) E acrescenta, referindo-se às características dessa "nova elite" no poder na América Latina: "Há um novo bloco dominante em formação, no qual a população entra de maneira parecida ao populismo inicial de meio século atrás, por meio de programas assistenciais e compensatórios, consumo popular consignado – uma renda que se extrai de maneira permanente –, e por meio de um mecanismo de recondução desse bloco ao poder, chamado eleições, que não tem nenhum significado político e democrático. É puro marketing de líderes carismáticos. Esse bloco hegemônico está assentado sobre essa fonte de poder, que são os recursos estratégicos, que interessam aos estadunidenses." (3)
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Como se observa, os novos conceitos e categorias ainda não se encontram plenamente definidos; não obstante, afastam-se eles inteiramente, como quer Paulo Arantes e como acreditamos nós, da idéia de ascensão das esquerdas ao poder. (4)
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Muitos equívocos são cometidos quando é discutida a questão das políticas sociais as quais limitam-se, basicamente, a ações assistencialistas. Por um lado, tais práticas são associadas ao "populismo" (5), como se a idéia de populismo se restringisse, tão-só, ao assistencialismo, e, por outro, são tidas como elemento que favorece a redistribuição de renda, como se o objetivo de sua implementação fosse realmente esse. Como sabemos, o assistencialismo hodierno vem sendo empregado como uma forma barata de comprar milhões de votos aos mais desvalidos e não guarda relação mais estreita com o velho populismo de fácies ditatorial; essas políticas, ademais, são tomadas como elemento inibidor do "coronelismo" e, por isso, estariam fazendo com que o clientelismo diminuísse. Ora, na verdade, antes de restringir tais mazelas, as políticas assistenciais as institucionalizaram, criando-se um verdadeiro "Clientelismo de Estado" o qual tem condimentado os discursos insossos devidos a governantes cheios de empáfia – nossos coronéis de novo tipo – e vazios de idéias capazes de transformarem-se em programas sociais efetivamente profícuos.
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É preciso ter claro: o moderno assistencialismo é fruto da democracia e não do populismo comprometido com ditadores, além disso, foi motivado, de início, pelos problemas gerados pela ampliação desbragada da pobreza motivada pela implementação de políticas econômicas neoliberais; posteriormente, governantes oportunistas descobriram nele um método eficaz de conquistar apoio político e o institucionalizaram sem que fosse acompanhado de medidas aptas a gerar emprego e desenvolvimento. Daí, de uma parte, a necessidade de sua continuidade, pois as hordas de miseráveis tornaram-se imensas, e, de outra, sua ineficácia, pois terão de perpetuar-se em face da falta de políticas econômicas desenhadas para enfrentar a falta de empregos e para assegurar o crescimento sustentado.
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Outro engano diz respeito à afirmação segundo a qual nos defrontaríamos, devido ao aumento do preço do petróleo, com o renascimento do nacionalismo. Evidentemente, não se dá o reaparecimento de coisa alguma, mas, sim, a luta dos detentores de recursos naturais por alcançar preços mais elevados e refazer contratos estabelecidos em bases que já lhes eram desfavoráveis e tornaram-se, nos dias de hoje, absolutamente irrealistas.
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De outra parte, o protecionismo – o qual estaria associado ao nacionalismo ressurgente – jamais deixou o proscênio internacional; na verdade sofreu sérias restrições nas nações cujos chefes políticos renderam-se integralmente aos centros hegemônicos mundiais e adotaram as práticas neoliberais pelas quais seus povos viram-se vitimados. Tal processo, no entanto, não se deu nas nações centrais as quais continuaram, placidamente como sempre, a defender irrestritamente seus interesses e suas reservas estratégicas; nem por isso, como sentem na própria carne vários povos, seus dirigentes políticos deixaram de ser adeptos incondicionais do imperialismo para tornarem-se nacionalistas ferrenhos.
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Não há, pois, ressurgimento de nada, apenas ocorre, como avançado acima, a aplicação de velhos preceitos decorrentes do funcionamento do capitalismo: os governantes das nações detentoras de reservas naturais procuram minimizar os prejuízos impostos por contratos lesivos a seus interesses e, dentro do possível, maximizar seus lucros. Destarte, na "Bolívia e na Rússia, as autoridades assumiram o controle direto dos campos de petróleo e gás natural; na Venezuela e no Reino Unido, a opção foi por elevar os impostos; e na Nigéria e no Cazaquistão os governos vêm concedendo tratamento preferencial às estatais petroleiras." (6)
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A adoção de conceitos pouco precisos, de noções genéricas ou de categorias inapropriadas levam, a meu juízo, ao anuviamento das questões e realidades por nós contempladas podendo dificultar a identificação dos problemas com os quais nos defrontamos e falsear as eventuais soluções que venhamos a propor.
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Procurar o refinamento de nosso arsenal analítico constitui, pois, tarefa de todos os interessados em desvendar acuradamente os fenômenos socioeconômicos aos quais votam seus estudos.
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NOTAS
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(1) Entrevista concedida por Paulo Arantes a Igor Fellipe Santos e intitulada: "América Latinha tem nova elite no poder". Jornal Brasil de Fato. São Paulo, 27 de abril a 3 de maio de 2006, p. 8.
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(2) Idem, Ibidem.
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(3) Idem, Ibidem.
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(4) Como sua eleição deu-se muito recentemente, excluo das observações críticas tecidas neste artigo o presidente Evo Morales e seu governo.
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(5) Quanto aos abusos cometidos na utilização do termo populismo veja-se: COSTA, Iraci del Nero da & VALENTIN, Agnaldo. O populismo como réu. Informações FIPE. São Paulo, FIPE, n. 302, p. 22-24, nov. 2005. Disponível em:
http://www.fipe.org.br/publicacoes/bif_edicao.asp?ed=302
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(6) MOUAWAD, Jad (do New York Times). Energia cara aumenta o nacionalismo: países produtores de petróleo e gás, como Bolívia, revêem contratos com multinacionais feitos em época de baixa. Jornal Folha de S.Paulo: caderno dinheiro2, 27 de maio de 2006, p. B19.
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18.5.06

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Lições da crise boliv(ar)iana
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Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa
São Paulo, 17 de maio de 2006

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Desde sua eleição, é facilmente identificável o projeto do presidente Luiz Inácio da Silva de arvorar-se como o grande líder, não só da América Latina, mas de todo o denominado Terceiro Mundo. Propunha-se como uma liderança pragmática, assentada numa pretensa unidade de interesses dos países mais pobres e na crítica inócua ao protecionismo dos países desenvolvidos, sobretudo quanto aos produtos agrícolas. Agregavam-se a estas idéias genéricas a proposta de um “Fome Zero mundial”, o perdão da dívida de alguns países africanos e a tentativa de dinamizar as relações comerciais Sul-Sul. A agenda de viagens e de discursos presidenciais enfatizava tais idéias com o intuito principal de propiciar um “verniz esquerdista” a um governo cuja política econômica apresentava nítido corte neoliberal, comprometendo seu prestígio perante os setores mais progressistas da sociedade brasileira.
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Todavia, a despeito dos resultados pífios de tais iniciativas, parecia que, ao menos no âmbito latino-americano, o reconhecimento do presidente brasileiro como a principal liderança de esquerda ainda estava assegurada. No entanto, os eventos recentes na Bolívia vieram a abalar definitivamente a posição postulada pelo dirigente máximo de nosso governo. Neste breve escrito ocupamo-nos, justamente, do vínculo entre esta última questão e o relacionamento entre alguns presidentes latino-americanos e seus respectivos alinhamentos políticos; trata-se, pois, de um tópico lateral – portanto menor – quando pensados os temas efetivamente relevantes em torno dos quais tem orbitado a preocupação dos analistas políticos cujos textos ferem os problemas afetos às Américas. Permitimo-nos, não obstante, duas breves menções a estes últimos. Vejamo-las.
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É interessante notar que a fragmentação dos interesses prevalecentes na América do Sul e a falta de uma coordenação de suas lideranças com vistas a medidas e planos de longo prazo têm proporcionado aos EUA o estabelecimento de contatos bilaterais cada vez mais estreitos com várias nações da área: Chile, Equador, Colômbia, Peru e, como anunciado por seu próprio presidente, o Uruguai. Assim, os norte-americanos, aos quais atribui-se uma postura indiferente com relação ao seu "quintal", têm-se mostrado muito eficientes na busca e consolidação de acordos pontuais que atendam a seus interesses e possam, eventualmente, servir como sucedâneos da tão criticada e indesejável Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
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Uma segunda observação a se impor diz respeito aos recentes golpes desferidos contra a CAN (Comunidade Andina de Nações) – afastamento da Venezuela – e o Mercosul – discordâncias entre os governos da Argentina e do Uruguai e ameaça de saída deste último. Além disso, tais entidades também se vêem atingidas pelas propostas de constituição da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e da CSN (Comunidade Sul-Americana de Nações); estas últimas, além de definirem-se como concorrentes, viriam a levar aquelas primeiras à extinção. Ademais, a promessa ainda nebulosa de construção de um gasoduto de âmbito continental é tomada por muitos analistas como quimérica e causadora de mais confusão nas já abaladas relações entre as nações da CAN e do Mercosul.
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Tal quadro, por si mesmo muito problemático, viu-se ainda mais conturbado por dois eventos recentes os quais colocaram a nu os desencontros existentes entre as lideranças da região. Referimo-nos ao lamentável entrevero diplomático no qual se envolveram os presidentes Evo Morales e Luiz Inácio da Silva e à crise de relacionamento entre os chefes de Estado de quatro nações que se pretendem muito fraternais e amigas: Cuba, Venezuela, Bolívia e Brasil. Esta crônica versa, justamente, sobre esta última questão.
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A ascensão persistente da estrela de Hugo Chávez abriu a luta pela liderança das assim chamadas "esquerdas" latino-americanas, pois o alargamento de seu prestígio deu-se numa quadra em que muitos outros governantes foram eleitos com base em plataformas programáticas contrárias, ainda que apenas em termos retóricos, à continuidade das políticas neoliberais cujo fracasso evidente chamou para si o repúdio das mais diversas camadas socioeconômicas da maioria das nações da área.
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O discurso antiimperialista de Chávez, aliado a sua política interna de teor assistencial, o conduziu a reivindicar a aludida liderança. De outra parte, Fidel Castro, o velho decano das esquerdas latino-americanas, deu seu beneplácito às pretensões chavistas, pois como sabido, recebe – e dele depende – polpudo auxílio econômico da Venezuela. Assim, não pode haver a menor dúvida: Fidel sempre estará disposto a trocar o sorriso amigo do presidente brasileiro pelo rico petróleo de Chávez, a despeito da tentativa de aproximação de nosso governante maior com base numa “relação carinhosa” de irmão mais novo dirigindo-se ao mais idoso.
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Evo Morales, por seu turno, por razões de mesmo feitio, acedeu de bom grado à tutela política disponibilizada pelo presidente venezuelano. Morales, às voltas com o imperialismo, em geral, e, em particular, com a "intervenção" da Petrobras, tida como um avantesma gerado pelo imperialismo brasileiro, mostrou-se, pois, imediatamente disponível para receber a assistência política e econômica de Chávez.
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Estavam postas as condições, assim, para o reconhecimento, por parte de Cuba e da Bolívia, da liderança chavista. Liderança assumida como das esquerdas, independentemente do comportamento efetivo de cada um dos políticos em tela.
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Neste quadro, o presidente brasileiro significou, apenas, uma pequena e incômoda pedra a ser removida do caminho do venezuelano.
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Tendo aderido às práticas neoliberais e comportando-se como um "amigo" dos governantes norte-americanos disposto a lutar para regrar o comportamento de seus pares sul-americanos (1), Luiz Inácio da Silva, além de também reivindicar a liderança almejada por Chávez, passou a utilizar-se da "fraternal amizade" da trinca maior da esquerda latino-americana (Fidel, Chávez e Morales) para posar, sobretudo perante seu público interno – tanto petistas como uma parcela de seus eleitores – como indiscutível líder esquerdista.
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Segundo imaginamos, tamanho "oportunismo" foi denunciado pela tríade tão logo o presidente boliviano viu-se na contingência de cumprir suas promessas de campanha e nacionalizar, muito pertinentemente, o petróleo e o gás de seu país. Como ocorrido com Fidel, aos ouvidos de Morales falaram mais alto seus interesses políticos representados pela assistência técnica e logística de Chávez e pelos votos a conquistar a fim de garantir a vitória nas eleições que se aproximam. Morales colocou um impasse ao governo brasileiro: manter-se coerente com seu discurso esquerdista no âmbito externo ou, atendendo aos rumos adotados internamente, assumir uma postura mais dura nas negociações. O reflexo mais visível desta contradição a que ficou exposto nosso governo foi dado, por um lado, pelo reconhecimento do direito boliviano às medidas de nacionalização e, por outro, pelas ameaças – ora veladas, ora explícitas – enunciadas pelo Ministro das Relações Exteriores e pelo Presidente da Petrobras. Morales, por seu lado, optou por uma tática de avanços e recuos bruscos cujo resultado mais saliente foi o de desmoralizar o governo brasileiro que se via, a cada momento, menosprezado pelo interlocutor boliviano. Destarte, muito embora o presidente do Brasil se tenha mostrado menos desequilibrado, foi, em poucos dias, despojado de seu tão almejado perfil de inconteste líder mundial de esquerda.
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Assim, por razões outras que as ditadas pela pureza ideológica, este trio pouco harmonioso prestou um bom serviço às esquerdas – estejam elas onde estiverem e sejam elas quais forem –, pois retiraram mais uma das máscaras usadas por um minúsculo político de uma América Latina tão pungentemente ferreteada pela mediocridade.
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NOTA
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(1) É significativa a este respeito a fala do encarregado do governo norte-americano para a América Latina, Tom Shannon, a respeito da ameaça representada pelo crescimento da influência de Chávez na área: "Precisamos de sócios estratégicos neste processo, como Colômbia, Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, países que entendam que o que está em jogo é como fazer com que as pessoas tenham um sentimento de pertencimento" ao governo.
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