22.4.06

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DESMOBILIZAÇÃO POLÍTICA: DÚVIDAS E QUESTIONAMENTOS
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2006

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Segundo alguns, nos defrontamos no Brasil dos dias correntes com uma marcante desmobilização política da qual uma das evidências é a grande indiferença de muitos segmentos sociais, marcadamente os mais populares, com respeito às práticas ilícitas desenvolvidas no seio do poder executivo central e na Câmara Federal por integrantes da cúpula dirigente do PT. Esta leniência para com os crimes cometidos por petistas e parlamentares de outros partidos seria, assim, apenas o sintoma mais grave e visível da falta de mobilização que abarcaria a vida política em geral.
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Há analistas para os quais a apatia denunciada acima não é um fenômeno recente, mas tem raízes mais profundas em nossa sociedade. Assim, alguns pesquisadores explicam a carência de mobilização em termos do ônus nela envolvido; segundo esse raciocínio, para as camadas menos privilegiadas de nossa sociedade, o custo de ações reivindicatórias revelar-se-ia muito alto em face dos benefícios alcançados. Ou seja, a análise "custo/benefício" é, para tais segmentos, desfavorável à mobilização. A meu ver essa idéia é questionável e simplista, pois se define, de pronto, como um argumento tautológico. Creio necessária uma ampliação do leque analítico concernente ao tópico em foco bem como nele investir mais tempo de reflexão a fim de melhor esquadrinhá-lo dos pontos de vista sociológico, histórico e psicológico.
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Das "Diretas já!" ao momento presente.
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Com referência às "Diretas já!" houve intensa e persistente mobilização popular, participação similar ocorreu quando do impeachment de F. Collor, mutatis mutandis o mesmo poder-se-ia dizer da eleição de Luiz Inácio da Silva: a população respondeu à altura a anos de engodo, marasmo e ortodoxia votando a favor das almejadas mudanças e contra o candidato de FHC.
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E agora, estaríamos vivendo uma quadra marcada pela desmobilização? Ao procurar resposta para esta indagação é preciso ter em conta a campanha eleitoral já desencadeada e em relação à qual, ao menos por ora, parte da população, justamente a menos privilegiada e conhecedora da pobreza, simplesmente está apoiando o atual presidente da República. Teria ocorrido um descolamento da assim chamada "voz do povo" com respeito à opinião pública, à qual aquela primeira sempre tenderia a ajustar-se; com relação a esse fenômeno veja-se crônica de minha autoria intitulada A voz do povo.
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De outra parte, e aqui ainda nos postamos no terreno das campanhas eleitorais, também devemos pensar numa eventual mudança que estaria ocorrendo nesse campo há já algum tempo. A "mobilização", em tempos de eleições, pode ter passado por um processo de globalização e de "terceirização". Não é mais necessário sair às ruas e comparecer a comícios, os quais se tornaram dispensáveis, basta comparecer ao colégio eleitoral; as coisas acontecem como se tudo estivesse profissionalizado: o candidato tornou-se um ator submetido ao marqueteiro, a este cabe a tarefa de "agitação e propaganda", restando ao eleitor, apenas, o asséptico ato de votar. É interessante verificar que, do ponto de vista psíquico, não parece ter havido um "cansaço" quanto à participação, centenas de milhares de pessoas concorrem a shows e bailes de fim de semana e mostram invejável disposição de "participação"; ficam horas dançando e gritando, cantam juntos músicas cujas letras são absolutamente vazias, enfim eles "participam".
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Em face de tais circunstâncias eleitorais é-se levado a afirmar estarmos a vivenciar um momento especial de nossa vida política, momento esse preso à campanha em curso e às próximas eleições. Não obstante tal afirmativa mostrar-se plenamente razoável, o travo amargo da dúvida não nos abandona e somos tentados a considerar a hipótese segundo a qual as alterações não dizem respeito tão-somente a aspectos formais, mas também atingem os elementos referentes ao "conteúdo" da participação política. Não existe mais o mundo socialista a encarnar um ideal redentor apto a catalisar os anseios por melhoras dramáticas da vida social. A queda da URSS e de seus satélites tornou longínqua, impossível mesmo, para imensa parcela da humanidade, a perspectiva de ruptura imediata do modo de produção capitalista. De outra parte, no momento atual clamam alguns poucos, aqui no Brasil, pela luta por objetivos demasiadamente "refinados" (ética, moral etc.) para a grande massa que se dá por feliz por participar do Bolsa Família e ganhar 100 reais por mês; montante esse só desprezível, diga-se com ênfase, aos olhos de pedantes acostumados a uma vida mais do que remediada! Enfim, embora possamos estar a nos defrontar com uma fase particular e passageira de nossa história política, são inegáveis as transformações de fundo ocorridas na área da participação política da população, em geral, e dos eleitores, em particular. De toda sorte, talvez cometam um grave erro de avaliação as pessoas para as quais as condições ora vigentes se confundem com imobilismo político. Vejamos alguns argumentos que negam uma pretensa passividade absoluta e qualificam melhor as particularidades de nossa sociedade.
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O MST não abandonou sua luta.
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Representaria grande falta de sensibilidade não reconhecermos a exuberante mobilização de centena de milhares de pessoas de nosso meio rural; pessoas essas congregadas no MST o qual, inegavelmente, apresenta-se como movimento político articulado. A este respeito cumpre lembrar que, embora mais focado no problema agrário, esse movimento jamais deixou de preocupar-se com outros elementos da vida política nacional. Trata-se, pois, como avançado, de uma pujante e concatenada participação com teor popular da qual muitos de nós – citadinos e integrantes da classe média –, por não recebermos dela influxos diretos, não tomamos plena consciência.
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Serão levados os dirigentes do MST a compor com o atual governo em relação à reeleição do presidente da República? Romperão com um governo distribuidor de "migalhas" (importantes para os que as recebem) incapazes de fugir a assistencialismo caracteristicamente eleiçoeiro; denunciarão os grandes corruptores que se alojaram no PT? Adotarão uma linha pragmática de acordos e compromissos espúrios com o poder? Decidirão não declarar apoio a nenhum candidato? Todas essas portas estão abertas e ainda não é possível antever-se qual será a escolhida; opção esta da mais alta relevância a fim de se qualificar com precisão a direção deste verdadeiro partido político cujas ações, embora não se mostrem todas imunes a eventuais reparos, têm merecido o respeito da maioria das pessoas de esquerda.
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Seja como for, o MST está vivo e atuante; ademais, como anunciado por suas lideranças, pretende estender suas bases ao meio urbano como forma de ganhar a simpatia dos moradores das cidades; ampliar-se-á, pois, ainda mais, sua ação política.
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Uma pitada de História.
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O fato de termos descartado na abertura deste escrito a idéia segundo a qual a apatia teria raízes profundas em nosso passado não implica negar as peculiaridades de nossa sociedade nem as particulares feições que a natureza de nossa formação histórica imprimiu às formas assumidas entre nós pela participação política e às relações entre as camadas subalternas e as elites.
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A meu ver, para nós, brasileiros, a mobilização precisa apresentar um perfil muito bem determinado e não pode ater-se, tão-só, a elementos apenas avaliáveis por uma camada mais preparada em termos educacionais. De outra parte, a mobilização por objetivos muito concretos vinculados à melhoria de vida também não se estabeleceu fortemente entre nós, pois criaram-se, no correr do tempo, outros mecanismos sociais para encaminhar tais reivindicações. Assim, para a massa menos abonada abre-se o apelo aos "coronéis" tenham eles a cara de proprietários de terras, de políticos ou mesmo de membros do clero. Nessa esfera, o objetivo perseguido é uma benesse qualquer: de uma ajuda do tipo do Bolsa Família a empregos públicos de baixa remuneração e pouco exigentes em termos de preparo escolar. Já as camadas médias também se servem do mesmo expediente, socorrendo-se de políticos e amigos influentes para conseguirem boas colocações no emprego público, matrícula em escolas de superior qualidade para seus filhos etc.
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Não sei até que ponto esse universo de favores continua a operar generalizadamente dessa maneira hoje em dia, mas até há pouco era assim que se procurava, em primeira instância, alcançar uma melhora das condições de vida; o recente caso de um ex-presidente da Câmara Federal o qual se jactava de defender bêbados infratores e é tido como patrocinador de um Ministro está a indicar o quão fortes ainda se mostram as práticas aqui referidas.
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Como se pode imaginar, tais modos de agir tendem a arrefecer tanto a luta por melhorias de caráter geral como atuam no sentido de fazer socialmente "aceitáveis" comportamentos menos rígidos por parte dos políticos e do poder executivo; pois, "com base neles poderemos alcançar nossos objetivos" pensariam os que pretendem buscar a ajuda dos "donos do poder"! Enfim, tento caracterizar aqui o quadro secularmente imperante entre nós, valendo ele, não só para a classe média, mas também para as camadas menos privilegiadas. Não obstante isso, foi notável a mobilização pelas "Diretas já!" e contra a continuidade de F. Collor no poder; como avançado, tais movimentos giraram em torno de questões muito bem determinadas e que se distinguiam por sua generalidade, vale dizer, diziam respeito à vida de largas parcelas da população, embora fugissem de aspectos imediatamente vinculados à elevação do padrão material de vida.
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A empresa como uma grande família.
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Uma outra ordem de raciocínio diz respeito ao que se tem visto ocorrer entre os trabalhadores das empresas privadas. Nos quadros de uma economia com baixo crescimento e na qual prevalece um alto nível de desemprego as práticas neoliberais encontraram um campo fértil para espraiarem-se. Assim, dá-se a generalização de técnicas desenhadas para incorporar às relações entre os trabalhadores e as empresas comportamentos próprios dos existentes no âmbito da amizade ou na esfera familiar. A empresa passa a definir-se como uma grande família, com respeito à qual deve, o trabalhador, preocupar-se em grau semelhante ao que dedica a seus familiares. No Brasil alguns "consultores" têm proposto uma forma de ação surgida na Inglaterra a qual propõe a substituição do cumprimento formal pelo abraço, pois tal tipo de confraternização eliminaria as barreiras existentes entre a direção e o trabalhador direto, agindo sobre este último de sorte a torná-lo um parceiro efetivo dos proprietários dos negócios; o interessante é que, ao "medirem" os efeitos da introdução deste método, os ditos consultores o fazem em termos de aumento de produtividade, baixa no número de empregados despedidos por motivo de choques com quadros dirigentes superiores e queda no número de faltas decorrentes de estresse. Como sabido, nessa área a idéia básica é fazer o trabalhador "vestir a camisa" da empresa. Assim, a sorte do trabalhador, sua estabilidade no emprego e o bem-estar de sua família confundem-se com o desempenho e com os lucros da empresa. Como os trabalhadores diretos, os quadros diretivos também vêem-se pressionados a "aproximarem-se" daqueles primeiros.
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De outra parte, a constituição de equipes relativamente autônomas de trabalho visa, como sabemos, a substituir parte substantiva dos controles; tais equipes, ademais, atuam no sentido de rebaixar o absenteísmo, o número de horas extras trabalhadas (quando ocorre uma falta cumpre aos próprios membros da equipe dar conta da atividade do elemento ausente), de aumentar a produtividade e de estabelecer um ambiente de autocontrole, enfim tudo funciona com o objetivo central de baixar os custos de produção. Pois bem, em face desse panorama não há qualquer dúvida sobre o fato de vivermos uma quadra caracterizada pela existência, na esfera das empresas, de uma ação explícita e programada de desmobilização generalizada dos trabalhadores. A pergunta a fazer reza: em que medida tais formas de atuação agem sobre a mobilização política da massa de trabalhadores? Sentir-se-ão eles menos motivados a lutar por reivindicações de fundo mais genérico? Embora nossa resposta não possa ser categórica, um "talvez sim" nos parece plausível.
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Uma consideração de ordem psicológica.
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A par das alterações em curso na forma e no conteúdo da participação política da população brasileira vivemos, além de outros aspectos já referidos acima, um momento histórico profundamente vincado pela imensa decepção causada pelo PT e pelo atual governo central. Assim, o sentimento de desmobilização e de apatia, que toma a muitos, certamente está penetrado por um expressivo componente de teor psicológico. Nesse sentido não parece descabido pensar-se numa "desmobilização psicológica" a qual estaria a refletir nossa sensação de impotência quanto à possibilidade de chegarmos a mudanças significativas na vida política nacional.
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Destarte, a impressão de que a mobilização política deixou de existir decorreria de vários fatores: de nossa frustração com um partido e um governante que se perderam na inação, renunciaram a seu passado, a seus compromissos e enlearam-se em uma repugnante teia de crimes econômicos e políticos; do aludido sentimento de impotência quanto à efetivação de mudanças e, por fim, da falta de perspectivas concretas de encontrarmos agentes políticos (e aqui penso tanto em pessoas como em organizações políticas) capazes de canalizarem e conduzirem ordenadamente a luta política pela superação da situação hoje reinante. Vale dizer, a "desmobilização" refere-se tanto ao passado recente como ao futuro imediato, ambos esvaziados pela defecção petista.
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Creio desnecessário lembrar que não estou a tratar a assim chamada "desmobilização psicológica" como mera ilusão de eleitores desalentados e desvairados; vinculei-a, bem claramente, a fatos cuja existência revela-se insofismável.
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Fecho para um discurso inconcluso.
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Como se depreende de seu título, não busquei expor neste breve texto conclusões relativas a um tema com respeito ao qual tenho muitas dúvidas e nenhuma certeza.
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Deixo inconcluso, pois, este texto, ficando no aguardo dos que possam esmiuçar mais percuciente e detidamente os problemas aventados.
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Aventurei-me a divulgá-lo visando a expor minha ignorância, permitindo-me, assim, o direito de lançar um repto aos mais capazes: tomem para si a incumbência de encarar os questionamentos aqui reportados.
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12.4.06

A VOZ DO POVO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2006

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Talvez seja estimulante determo-nos na reconsideração de como a conhecida existência de três condicionantes inter-relacionados afeta, no momento histórico presente, a orientação da política brasileira e, em particular, na revisão de seu papel no enfrentamento da crise política ora defrontada pelo país.
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Contamos, desde sempre, com uma elite socialmente irresponsável, que "herdou" o Brasil dos portugueses não tendo sido obrigada a assumir, quando tomou a direção do país nascente, nenhum compromisso com as necessidades e valores da nação e de seu povo. De outra parte, desde os primórdios da colonização, conhecemos o adensamento de uma massa de desvalidos, excluída em larga medida de conquistas sociais de caráter universal, da cidadania efetiva e das parcelas mais substanciais das benesses geradas pelo crescimento econômico; trata-se, como sabido, da massa do povo, ou simplesmente do "povo" ou do "povão". Por fim, constituiu-se no correr do tempo uma classe média composta por vários estratos e ampla o bastante para atuar como um fator político capaz de, num quadro de composição com a elite dominante, alcançar o atendimento de alguns de seus pleitos criando, em contrapartida, um clima de concórdia mediante o qual os mais graves problemas enfrentados pelo país e pelo "povão" sistematicamente são deixados de lado ou tratados de maneira perfunctória sem se chegar decisivamente às questões de fundo e às soluções efetivamente transformadoras necessárias a que a Nação, como um todo, possa desenvolver-se sem as travas impostas por uma secular dívida social sempre crescente.
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Neste pano de fundo definem-se cinco elementos que se colocam em duas categorias distintas. De uma parte encontramos dois deles, a "opinião pública" e o que se tem chamado de "voz do povo" – aqui entendida como a manifestação das opções políticas da massa menos aquinhoada de nossa população. Por outro lado, nos deparamos com os três grupamentos socioeconômicos e políticos acima referidos: as elites, compostas de grupos que buscam albergar-se em seus nichos econômicos e de interesses, deles saindo apenas pelas suas reivindicações específicas ou quando chamados pelas "grandes causas" comuns à elite como um todo; as camadas médias integradas por distintas faixas e, por fim, a massa popular a qual, por ainda não haver conseguido estruturar-se de maneira orgânica, não raras vezes vê-se usada e manipulada pelos dois outros entes sociais aqui contemplados.
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Os segmentos médios, cuja postura e cujas ações tendem abertamente para a conciliação e os arranjos de todos os tipos, têm alcançado seus objetivos – sempre limitados, tenha-se presente – sem o emprego de métodos mais arrojados e sem demonstrar autonomia plena. Por via de regra, apegam-se às elites delas extraindo uma ou outra concessão que atenda a suas demandas. Mesmo o movimento tenentista, o mais audacioso e independente de todos os promovidos pelas camadas médias, viu-se, ao fim e ao cabo, engolfado pela elite política e econômica, a qual transformou-se e "modernizou-se", é verdade, mas manteve sua essência dominante e cruelmente excludente.
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Com respeito à última observação posta acima, cumpre enfatizar a secular permanência dos elementos nucleares característicos da elite brasileira, os quais, praticamente intocados, têm atravessado séculos. Tem ela, assim, mantido um comportamento absolutamente irresponsável do ponto de vista social, enquanto se revela portadora de extrema agilidade e capacidade inovadora quando apreciada da perspectiva econômica.
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Na verdade, a "iniciativa privada" viu-se habilmente mobilizada pela Coroa portuguesa para a tarefa de constituição, "construção", da colônia brasileira. Assim, a formação do Brasil deve-se, na mais ampla medida, ao capital privado e nesse sentido é obra e "propriedade" dos "avoengos" daquelas elites. Ademais, na medida em que não conhecemos uma revolução burguesa clássica, os donos de nossa economia simplesmente se apossaram do poder político sem a necessidade de estabelecerem qualquer acordo com a massa da população brasileira. Isso fez das elites senhoras efetivas do poder e do Estado; a seus olhos, elas não tomaram ou tomam nada do Estado, apenas sentem-se como administradoras de algo que é seu. A idéia de uma vida Republicana aparece, assim, como uma tentativa de usurpação da qual as elites são vítimas. Os episódios deprimentes envolvendo, não há muito, a queda do presidente da Câmara Federal, assim como a maneira rasteira de pensar de tal político, ilustram com notável clareza o quão fortes ainda se mostram os métodos e as construções ideológicas herdadas de antanho.
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A grande massa popular que não conhece, como avançado, a organicidade indispensável ao desenvolvimento de ações globalmente coordenadas, ou se vê embaída pelos dois outros grupos, ou se restringe a ações tateantes e sem direcionamento seguro, ou se dá a atos mais ou menos desesperados, mais inspirados pela paixão do que pela razão. A respeito desta última questão impõe-se a lembrança de Canudos, com Antônio Conselheiro e seus seguidores, assim como a de outros movimentos messiânicos aos quais filiam-se a Guerra do Contestado e o culto votado ao Padre Cícero Romão.
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Note-se, pois, não ter ainda, nossa massa popular, alcançado, do ponto de vista político, nível bastante para organizar-se de modo autônomo e para dirigir suas lutas de maneira conseqüente e apta a fazê-la alcançar plenamente seus objetivos. Nesse sentido, pode-se afirmar ser tal massa popular passível de sofrer a influência imediata das camadas médias; tal fenômeno – comum aos movimentos populares, diga-se desde logo – observou-se com respeito aos partidos de esquerda no primeiro meado do século XX e repetiu-se nos casos do PT e do MST.
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Elites, camadas médias e massa popular, a meu ver nossas análises políticas sempre terão de se ocupar com a presença desses três vetores, cada um dos quais, note-se, nem sempre se apresenta com o mesmo peso e perfil. Vale dizer, a força de cada um é mutável e não segue um padrão ou tendência histórica definida. Ademais, como não poderia deixar de ser quando se trata de "movimentos" interdependentes, os alinhamentos e composições também nos oferecem desenhos variáveis. Assim, enfrentam-se dificuldades não só para "explicar" o que foi, como, e sobretudo, para divisar os caminhos que serão selecionados por u'a massa de eleitores a qual, definido o rumo a ser tomado, parece persegui-lo de modo determinado.
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Ao considerarem os três segmentos sociais acima referidos os analistas sempre o fizeram tendo em conta a opinião pública, à qual, mais cedo ou mais tarde, acabava por se vergar a vontade política das massas populares. Tais condimentos, não obstante, nos parecem insuficientes no momento presente, pois a eles somou-se um novo "complicador", qual seja, o forte peso assumido pela assim chamada "voz do povo" a qual, ainda que provisória e temporariamente, desgarrou-se de suas peias.
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Tendo em vista o acima posto, e em face da profunda crise política pela qual nos vemos envolvidos nos dias correntes, sou levado a crer na ocorrência de dois descolamentos muito relevantes: por um lado, o presidente da República continua a receber substantivo número de indicações nas pesquisas eleitorais efetuadas nos últimos meses, fato este a indicar que sua candidatura não foi abalada profundamente pela crise; de outra parte, a condicionar esse primeiro fenômeno, observa-se que a "voz do povo" desprendeu-se, ao menos na quadra ora vivenciada, da opinião pública, cuja formação, como sabido, dá-se, sob o influxo das elites dominantes, no seio das parcelas mais esclarecidas das classes médias. É justamente este último evento o mais saliente de todas as ocorrências políticas dos últimos tempos. Como bem lembram os analistas políticos a política assistencialista desenvolvida há anos, mas amplamente incrementada pelo atual governo, chegou efetivamente às bases mais carentes da massa da população brasileira dela recebendo a devida resposta, qual seja, o apoio à reeleição de Luiz Inácio da Silva. O presidente foi conduzido a tal condição pela reação por ele oferecida à crise gerada pelos desmandos e crimes cometidos pelos quadros do PT. Como sabido, o presidente da República, além de aproximar-se do "povão" e a este dirigir seu discurso em busca de um escudo que o resguardasse, acelerou e ampliou os programas de teor assistencialista – necessários e indispensáveis na atual quadra, diga-se com firmeza – de sorte a fazê-los, de fato, alcançar um grande número de famílias extremamente necessitadas. Como avançado, as pesquisas de opinião logo apontaram o quão frutífera é tal forma de atuação reforçando a determinação presidencial de alargar aqueles programas e funcionando como o combustível que tem alimentado a empáfia e a segurança demonstradas por um governante moralmente falido.
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Assim, e isto o atual presidente parece ter percebido claramente, a repulsa aos métodos e práticas implementados pelo PT e por seus dirigentes mais graduados confina-se a uma parcela expressiva, porém minoritária, do eleitorado mais abonado: um número menor vinculado às elites dominantes e um número bem maior de homens e mulheres pertencentes às camadas média.
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Se o quadro aqui bosquejado estiver correto e o atual presidente da República reeleger-se estaremos, realmente, em situação muito crítica. Isto porque será demonstrado que, com um porcentual mínimo do PIB, tornou-se possível "comprar" a presidência com base em políticas assistencialistas incapazes, de maneira isolada e sem enquadrar-se em um plano global para a economia nacional, de nos oferecerem a procurada solução para os graves problemas socioeconômicos que nos afligem. Ademais, além de perdermos parte ponderável das ótimas oportunidades decorrentes do dinamismo ora imperante na órbita do comércio internacional, sofreremos perdas político-ideológicas imensas com respeito a parcela substantiva do eleitorado a qual, ciente da permanência no poder de um partido totalmente desmoralizado e de um presidente politicamente fraco e desfibrado, poderá vir a colocar em novo patamar a repugnância pela vida política em geral, deixando, eventualmente, de perceber dever-se tal situação ao perverso sistema político ora vigente, o qual propicia as distorções da vivência democrática por nós testemunhadas nos últimos lustros, deturpações estas as quais, para nossa infelicidade, espraiaram-se, em maior ou menor grau, pelos três poderes máximos da República.
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Por outro lado, caso não ocorra a reeleição do atual ocupante do Palácio do Planalto, ver-nos-emos igualmente mal servidos, pois mais uma vez estaremos entregues aos representantes imediatos da velha elite cujas raízes se confundem com o próprio nascimento do Brasil.
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