28.10.06

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O SEGUNDO MANDATO: UM PROGRAMA POSSÍVEL
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, 27 de outubro de 2006
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Em termos genéricos, pode-se distribuir o eleitorado brasileiro em cinco grupos distintos: a) os próceres e afiliados dos diversos partidos existentes aos quais soma-se um número substantivo de simpatizantes os quais, por via de regra de maneira acrítica ou levados por interesses pessoais das mais variadas espécies, orbitam os partidos políticos mais expressivos; b) um grupamento não muito grande integrado por votantes "ideológicos", porém não vinculados imediatamente a nenhum partido; trata-se de adeptos dos mais discrepantes matizes político-ideológicos cujos votos são consistentemente orientados pelas idéias esposadas por seus titulares; c) um largo segmento de desvalidos cuja pobreza os credencia a receberem auxílios governamentais do tipo do Bolsa Família; d) um conjunto igualmente numeroso de votantes enquadráveis nas várias faixas de rendimento correspondestes às nossas classes médias, desde aqueles com rendas bem modestas, passando pelos remediados e alcançando os detentores de bens móveis e imóveis e outros recursos e rendas bastantes para oferecer-lhes um padrão de vida elevado; e) por fim, eleitores pertencentes à elite econômica detentora de polpuda parte da riqueza nacional.
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A experiência proporcionada pelo desenrolar e pelos resultadas das últimas eleições gerais, sobretudo quanto à escolha do presidente da República, evidencia existirem, nos dias correntes, condições para formular-se um programa de ação governamental capaz de atender aos interesses de grande parte das pessoas vinculadas à maioria dos cinco grupos acima delineados. Tal programa, ademais, pode ser pensado e implementado visando-se, tão-somente, ao poder e à sua manutenção, sem qualquer compromisso com os interesses nacionais de longo prazo, com o desenvolvimento econômico sustentável e com o bem-estar das futuras gerações.
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Enfim, defrontamo-nos com uma situação da qual poderá decorrer um longo período de estagnação econômica e de indesejável involução política. Vejamos, de modo sintético, alguns dos principais elementos do programa de ação governamental aqui aventado.
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No plano econômico, a continuidade e a eventual ampliação das práticas assistencialistas ora desenvolvidas, entendidas por mim como um verdadeiro Clientelismo de Estado, assegurará a persistência do apoio dos despossuídos, apoiamento este passível de ser ampliado numericamente na medida em que se der o referido alargamento dos programas ora desenvolvidos.
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De outra parte, a manutenção da atual política macroeconômica propiciará o atendimento dos interesses da camada mais rica do eleitorado. Para evitar que se repita o lamento do atual presidente no referente à falta de apoio irrestrito de parte substancial de tal grupo, impor-se-á um plano de "conscientização política" da elite de sorte a fazê-la compreender definitiva e cabalmente as intenções subservientes e meramente continuístas do atual ocupante do palácio do Planalto – o qual certamente será reeleito –, de seus acólitos e de seus demais seguidores.
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Quanto às camadas médias, será necessário tomá-la minimamente em conta e ceder-lhe algumas poucas benesses, pois a resistência maior, da perspectiva numérica, à reeleição de Luiz Inácio da Silva deveu-se, justamente, aos votos amealhados por seu oponente nesta numerosa parcela do eleitorado. Facilitar o crédito para a aquisição da casa própria e para a compra de bens duráveis bem como uma atenção maior quanto à formulação das regras do imposto de renda definem-se como fortes argumentos para angariar a anuência da classe média aos projetos presidenciais e para fazê-la acolher com simpatia as indicações eleitorais do presidente. A reforçar tais medidas poderão comparecer o aprofundamento de programas destinados a facilitar o ingresso no ensino superior pago e público assim como um tratamento menos restritivo dirigido às Universidades Federais e às agências de fomento à pesquisa acadêmica.
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A meu juízo, em seu conjunto, as linhas acima explicitadas mostrar-se-ão suficientes para atender o público interno do partido do presidente assim como para satisfazer seus simpatizantes.
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Tal esquema certamente ver-se-á coroado pelas indefectíveis composições a serem pactuadas no âmbito do poder Legislativo e pelo atendimento das reivindicações político-fisiológicas dos partidos e dos políticos dispostos a comporem com o poder central.
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Como se observa, pouquíssimo se exige para a manutenção no poder de seus atuais detentores. A este respeito, diga-se, a medida mais relevante já foi anunciada pelo presidente a ser reeleito: os aloprados do PT serão devidamente contidos!
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29.8.06

BRASIL: OS MESMOS ATORES E NOVOS PAPÉIS?
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Iraci del Nero da Costa
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Ao que parece, a contar do início da crise que se abateu sobre as principais lideranças petistas devido à revelação das práticas criminosas sobre as quais se assentou o escândalo do "mensalão", tem-se dado, crescentemente a consolidação de um relevante fenômeno político cujos primeiros momentos ocorreram há alguns lustros. Pensamos no que caracterizamos, na crônica intitulada A voz do povo, escrita em abril de 2006, como o descolamento da "voz do povo" – entendida como a manifestação das opções políticas da massa menos aquinhoada de nossa população – vis-à-vis a "opinião pública", à qual, conforme nos mostra a experiência, "mais cedo ou mais tarde, acabava por se vergar a vontade política das massas populares" (1), ou seja, a chamada "voz do povo".
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Como afirmamos no aludido escrito: "a 'voz do povo' desprendeu-se, ao menos na quadra ora vivenciada, da opinião pública, cuja formação, como sabido, dá-se, sob o influxo das elites dominantes, no seio das parcelas mais esclarecidas das classes médias. É justamente este último evento o mais saliente de todas as ocorrências políticas dos últimos tempos. Como bem lembram os analistas políticos a política assistencialista desenvolvida há anos, mas amplamente incrementada pelo atual governo, chegou efetivamente às bases mais carentes da massa da população brasileira dela recebendo a devida resposta, qual seja, o apoio à reeleição de Luiz Inácio da Silva. O presidente foi conduzido a tal condição pela reação por ele oferecida à crise gerada pelos desmandos e crimes cometidos" por alguns "quadros do PT. Como sabido, o presidente da República, além de aproximar-se do 'povão' e a este dirigir seu discurso em busca de um escudo que o resguardasse, acelerou e ampliou os programas de teor assistencialista – necessários e indispensáveis na atual quadra, diga-se com firmeza – de sorte a fazê-los, de fato, alcançar um grande número de famílias extremamente necessitadas. (...) as pesquisas de opinião logo apontaram o quão frutífera é tal forma de atuação reforçando a determinação presidencial de alargar aqueles programas e funcionando como o combustível que tem alimentado a empáfia e a segurança demonstradas por um governante moralmente falido" (2).
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Segundo penso, o processo ora referido é complexo e seu acompanhamento ao longo do tempo é dos mais difíceis, pois ele se deu lentamente em seu início e deveu-se a causas diversas que foram se sucedendo no correr dos anos. Revelou-se, ademais, descontínuo tanto no tempo como no espaço. De toda sorte, foi-se avolumando, ganhando dinamismo cada vez maior, configurando-se, a cada passo, de maneira mais nítida e ampliando, a cada lapso, sua independência. Assim, nos dias correntes, parece ser forte o bastante para impor a reeleição do atual presidente. Não é descabido, pois, imaginarmos que esse antigo ator de nosso cenário político passou a desempenhar, na quadra ora vivida, um papel novo e dos mais importantes.
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Persegui-lo em sua formação, como avançado, define-se como tarefa árdua. Não obstante, tentaremos fazê-lo, ainda que de modo meramente especulativo.
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Possivelmente, as raízes do processo aqui contemplado encontrem-se em parte dos votos amealhados por Paulo Maluf em várias das eleições das quais participou. À época eu considerava tais eleitores como aventureiros que se identificavam com a figura de um político tido como um arrivista dominado pela idéia de que a sorte e/ou o acaso poderiam sorrir-lhe a qualquer momento; enfim pessoas que, partindo do nada, queriam, sem muito esforço, alcançar a bem-aventurança decorrente do enriquecimento fácil.
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Um segundo momento da "independentização" sob análise marcou-se pelo rápido avanço político-eleitoral das seitas religiosas "de resultados" as quais, em pouco mais de uma década, conquistaram não só milhões de seguidores, mas, igualmente, um vultoso número de fiéis eleitores; a estes últimos devem, uns poucos evangelizadores, o enorme espaço político hoje ocupado por não muitas denominações religiosas. Embora dispersos em vários quadrantes econômicos, tais eleitores concentram-se nas camadas sociais menos abastadas, distinguindo-se, também, pela imensa pobreza intelectual a que se viram condenados por integrarem uma sociedade cujo maior galardão é a excludência sistemática.
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O início da consolidação do descolamento aqui considerado deu-se, como anotado acima, no bojo da crise desencadeada pelas denúncias formuladas pelo então deputado Roberto Jefferson. O respaldo emprestado ao atual presidente por numerosa parcela do eleitorado de baixa renda proporcionou uma visão mais clara de um movimento que se dava nas entranhas da sociedade brasileira. A assim chamada "voz do povo" estava a liberar-se de suas peias históricas e, caminhando por si, pronunciava-se favoravelmente à continuidade da política assistencialista promovida pelo governo federal; como já consignei, viu-se tal política imediatamente ampliada com entusiasmo pelo governo central, criando-se, com isso, um verdadeiro "Clientelismo de Estado".
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A proximidade entre as eleições e a crise petista favoreceu, dado o quadro esboçado no corpo desta crônica, a afirmação da candidatura do atual presidente e o aprofundamento da ruptura entre a "voz do povo" e seus antigos liames. Vivemos, pois, uma quadra na qual se vê privilegiado, em termos da escolha do novo presidente, o segmento mais pobre de nossa população.
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Destarte, no âmbito das eleições presidenciais, comporta-se tal parcela do eleitorado como ator principal. Conquanto este posto de protagonista não se repita no plano dos pleitos estaduais, sempre cabe perguntar qual será o posto a ser ocupado futuramente por este expressivo grupo social.
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Retornará ao seu velho escaninho, no qual acomodou-se por séculos? Solução possível, porém pouco provável, pois será ele, certamente, cortejado tanto pelos eleitos como pelos derrotados nas urnas; este fato atua no sentido de afastar a hipótese de estarmos diante de um movimento fortuito e passageiro.
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Ganhará autonomia plena, capacitando-se a compor-se organicamente de sorte a superar as limitações próprias da falta de recursos e de uma formação intelectual e política mais apurada? Embora desejável, trata-se de um final feliz dificilmente alcançável.
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Permanecerá em sua postura atual, sem maiores desenvolvimentos? Este resultado define-se, a um tempo, como provável e largamente indesejado, isso porque, caso essa camada popular venha a se manter inerte, sua presença independente na vida política nacional representará um forte componente negativo, pois veremos crescer continuamente os montantes de recursos destinados ao mero assistencialismo.
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Se esta última possibilidade vier a efetivar-se a conclusão maior a se impor leva-nos a imaginar o agigantamento dos entraves ao pleno desenvolvimento sustentado da sociedade brasileira a qual, além de vitimada por suas elites, passará a ser presa de uma imensa massa de desvalidos cujo interesse imediato prender-se-á, tão-somente, ao recebimento de migalhas pouco custosas a serem distribuídas, gostosa e generosamente, por políticos oportunistas e inescrupulosos que vierem a nos governar.
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(1) COSTA, Iraci del Nero da. A voz do povo. Informações FIPE [boletim eletrônico]. São Paulo, FIPE, n. 309, p. 21-23, jun. de 2006, p. 22.
(2) COSTA, Iraci del Nero da. Op. cit., p. 22-23.
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9.6.06

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PAROLE, PAROLE, PAROLE... SOLTANTO PAROLE
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Iraci del Nero da Costa
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Inúmeras falácias empanam as pseudo análises efetuadas em todos os âmbitos nos quais se travam debates políticos entre nós. Tanto "leigos" como "profissionais" incorrem em tais equívocos os quais podem ser referidos às tão denunciadas distorções de caráter ideológico cujo objetivo último é embair os incautos.
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Assim, fala-se de governos de esquerda obrigados a vergarem-se ao neoliberalismo. Ora, governos de esquerda aplicam medidas de "esquerda", aqueles preocupados em implementar práticas neoclássicas são, obviamente, governos de direita! De acordo com o raciocínio em tela, os "esquerdistas", ao se defrontarem com a realidade (assumindo o poder), viram-se obrigados, pela natureza das coisas, a reconhecer a validade daquelas práticas. Na verdade, governantes eleitos como se fossem de esquerda assumiram suas reais posições políticas ao galgarem o poder. Como diria Hegel, o "direitismo" estava lá (em potência, dynamei) e veio a se explicitar com a chegada de seus portadores aos cargos para os quais foram escolhidos pelos eleitores.
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De outra parte, não se trata de nenhuma "força natural" a se impor aos políticos, pois as decisões políticas colocam-se na esfera da cultura e não na órbita da natureza; esse apelo ao "natural", ou naturalização do social, é uma reminiscência das mais pobres e grosseiras do positivismo, fabulação esta absolutamente obsoleta e já abandonada há mais de um século por pensadores conscienciosos. Como sabemos, ao dizer ser "natural" tal ou qual fenômeno pretende-se fazer com que ele seja aceito, sem discussão, como um fato verdadeiro e irrecorrível, pois se trata de um algo posto pela natureza, contra a qual não se pode antepor nenhum argumento. Como é óbvio, os governantes têm de ser considerados por sua efetiva maneira de ser e de agir, e não pelo que aparentavam ser, ou prometiam vir a fazer, quando ainda eram meros candidatos.
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Outra inverdade muito difundida está na afirmação segundo a qual a cobrança a recair sobre o atual presidente da República seria excessiva, ultrapassando largamente a padecida pelos governantes anteriores, particularmente a dirigida contra o governo FHC. Trata-se da própria negação da atividade intensa exercida por décadas pelo PT, o qual, pertinentemente diga-se, sempre cuidou de apontar os erros e omissões dos distintos governantes aos quais se opôs. Quanto a FHC, foi ele argüido desde sua posse; tal pressão fez famosa a frase "Esqueçam tudo que eu escrevi". Ademais, tem-se de lembrar que, na verdade, havia menos a cobrar de um governo do qual não se esperava a implementação de reformas de grande monta. De outra parte, e isso é crucial e definitivo, FHC foi tão duramente criticado que, não só não fez seu sucessor, mas se viu sucedido por um candidato sobre o qual concentraram-se as esperanças de mudanças almejadas de há muito por nossos segmentos populacionais menos favorecidos e por todas as correntes de esquerda existentes no país. Além disso, e quanto a este ponto parece haver concordância universal, as ilegalidades incorridas pelos governos anteriores só não se viram expostas à luz do dia ou porque o PT, e as esquerdas em geral, não se mostraram eficientes o bastante para demonstrá-las, ou porque não foram elas cometidas de maneira tão escancarada como a observada no atual governo.
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Cumpre lembrar, por fim, que já tratamos em outros textos da utilização de um grosseiro falseamento ideológico quanto ao significado do termo "populismo" (1) assim como do uso indevido da idéia de que teria havido, na América Latina, uma ascensão de partidos ou de movimentos de esquerda ao poder; da associação das políticas assistencialistas hodiernas – presentes em várias nações latino-americanas – com programas de redistribuição de renda, quando na verdade estamos em face de um verdadeiro "Clientelismo de Estado"; e da idéia do renascimento do nacionalismo protecionista como decorrência do aumento do preço do petróleo no mercado internacional. (2)
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NOTAS
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(1) Cf. COSTA, Iraci del Nero da & VALENTIN, Agnaldo. O populismo como réu. Informações FIPE [boletim eletrônico]. São Paulo, FIPE, n. 302, p. 22-24, 2005.
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(2) Cf. COSTA, Iraci del Nero da. Observações sobre equívocos terminológicos. São Paulo, texto com divulgação pela Internet, maio de 2006.
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29.5.06

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OPINIÕES DE UM LEIGO SOBRE LIDERANÇA CARISMÁTICA(1)
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2006
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Segundo creio, a liderança carismática resulta de um processo dialético iterativo mediante o qual é estabelecida a relação entre o líder e seus liderados. Ambos os lados são levados por fina sensibilidade; de sua parte, o líder em construção capta as necessidades e anseios de um dado coletivo, este último, por sua vez, ao aprovar a postura de seu "escolhido", reforça e torna a cada passo mais claros os aludidos anseios. Este reforço positivo, tão logo é apreendido pelo líder, leva-o a burilar sua imagem e a aprimorar seu discurso; isto se dá a cada "troca de informações" de sorte a aproximar, cada vez mais, as perspectivas dos liderados e as atitudes e posições esposadas pelo líder. Nesse sentido pode-se afirmar que o líder escolhe a quem liderar e, concomitantemente, é selecionado pelos integrantes da massa que conduz. (2) Nesta situação, o papel ativo da liderança está em identificar e explicitar palmarmente os anseios e necessidades do coletivo; em chamar seus comandados à ação, mobilizando suas vontades e fazendo com que transcendam seus eventuais interesses pessoais imediatos e, por fim, em tornar claros os caminhos a seguir a fim de serem alcançados os objetivos almejados.
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Esse contínuo rebatimento dos dois pólos estende-se por largo período de tempo no correr do qual se consolida a confiança na liderança e se firma a disposição de segui-la; esta, por seu turno, compromete-se cada vez mais fortemente com as necessidades e aspirações de seus apoiadores.
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Mediante tal processo erigem-se, a meu ver, os líderes capazes de fixar-se perenemente no espírito dos povos, sejam eles religiosos, políticos ou a personificação de outras expressões culturais marcantes de dada época, nação ou comunidade.
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A mais recente emergência de liderança carismática a se dar entre nós foi a de Lula, tornado presidente da República após longo e profícuo período de atividade sindical e política. Tal liderança, não obstante, para muitos de seus apoiadores não se fixou definitivamente, pois a figura do presidente Luiz Inácio da Silva viu-se desgastada por haver ele rompido com as idéias e compromissos assumidos no correr das décadas que antecederam sua chegada à Presidência.
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Essa ruptura foi violenta, pois se deu tanto no plano objetivo como no subjetivo. Este último, em particular, define-se como decisivo na desconstrução da imagem de uma liderança carismática, pois é tomada pelos seguidores como prova de que foram vítimas de um engodo conscientemente pespegado por seu ex-líder. Examinemos os dois planos acima apontados.
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Em termos objetivos não foram cumpridas as promessas feitas nem implementados os programas anteriormente aceitos como absolutamente prioritários. Ao contrário, as medidas adotadas pelo governante chocaram-se frontalmente com a linha programática perfilhada no passado.
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Embora da maior gravidade, este descompasso entre o que poderia ser tido como o desejado e o efetivamente possível não parece ser forte o bastante para desbancar uma liderança carismática; para tanto faz-se necessário um golpe com caráter subjetivo, condição esta que explicita a mentira conscientemente formulada, a qual será tomada pelos seguidores como inequívoca traição impingida por seu líder.
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O paradoxal da situação em que se dá a constatação da existência do embuste acima aludido está no fato de depender tal reconhecimento de uma confissão cabal, insofismável e inteiramente honesta da própria liderança em questão.
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Luiz Inácio da Silva, ao admitir serem apenas bravatas tudo que professou e com o que se comprometeu antes de eleger-se presidente, efetuou a referida confissão condenando-se, assim, como um fraudador que tudo fez visando, tão-só, a galgar o poder máximo da República.
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Esse seu lapso de plena sinceridade foi-lhe fatal, pois o desnudou perante muitos de seus apoiadores aos quais restou, apenas, uma atitude: a de repudiar tamanha desfaçatez. (3) Tal decisão vê-se, ademais, integralmente abonada quando se atenta para o comportamento de vários dirigentes máximos do PT, já afastados, e para as ações desenvolvidas no âmbito do governo por muitos próceres petistas, igualmente demitidos.
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NOTAS
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(1) Não me ocupo aqui da assim chamada liderança carismática patológica ou autocrática, no âmbito da qual o líder determina, solitária e unilateralmente, o que há de se fazer e anelar enquanto os conduzidos, sem questionamentos, simplesmente acatam, passivamente, a orientação ditada por seu guia. Penso num tipo de liderança carismática própria de um ambiente abertamente democrático e na esfera da qual não ocorre a manipulação absoluta dos liderados, os quais atuam de maneira consciente e racional.
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(2) Embora toda e qualquer forma de liderança carismática padeça de limitações óbvias e possa ser indutora de graves distorções da vivência coletiva, sua existência deve ser vista, antes de outras considerações qualificadoras, como um instrumento de luta de homens por suas metas e ideais e da comunidade por seus interesses e necessidades.
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(3) Como tive oportunidade de consignar no escrito intitulado A voz do povo, uma parcela substantiva dos eleitores do atual presidente continua disposta a dar-lhe apoio eleitoral; trata-se, em grande medida, de integrantes do segmento mais desvalido de nossa população, grupo este que tem sido atendido pela política assistencial do governo Federal. Apercebendo-se disso, o presidente da República, recentemente, ampliou tanto a faixa populacional apta a receber auxílio como a quantia a ser repassada a cada beneficiário.
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OBSERVAÇÕES SOBRE EQUÍVOCOS TERMINOLÓGICOS
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2006
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Vivenciamos nos dias correntes, como acusam vários analistas políticos, mudanças expressivas quanto às elites que têm galgado o poder central de muitas das nações latino-americanas.
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Conquanto tais alterações pareçam apresentar caráter original, têm elas sido contempladas, por via de regra, com a utilização de categorias de há muito fixadas pela literatura política e sociológica.
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Na medida em que tal instrumental analítico acha-se "comprometido" e fortemente marcado por realidades já superadas, mostra-se ele, a meu ver, insuficiente para descrever de maneira precisa as condições com as quais nos defrontamos no presente.
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Fala-se, assim, da ascensão de partidos ou de movimentos de esquerda ao poder; no entanto, ao serem qualificadas, tais "esquerdas" não guardam parentesco maior com o conceito já fixado do que vem a ser esquerda. Como pertinentemente afirmado por Paulo Arantes: "O que eu vejo nessa famosa América Latina que teria dado uma guinada para a esquerda é a consolidação de uma nova classe dirigente com apoio popular para extrair riqueza, renda e recursos da sociedade em outras bases. De um ponto de vista socialista e de esquerda, isso não tem nada a ver" (1). Sobre essa "nova classe dirigente", diz ele: "Nós temos [na América Latina] uma nova elite, que não sabemos o que é. No Brasil, passa por fundos de pensão, sindicados, gestores públicos, banqueiros, agronegócio e a burguesia exportadora. A burguesia nacional de Estado deve entrar no cenário se as Parcerias Público-Privadas forem tocadas de maneira inteligente, mas quem vai ganhar são os bancos, que devem fazer os financiamentos." (2) E acrescenta, referindo-se às características dessa "nova elite" no poder na América Latina: "Há um novo bloco dominante em formação, no qual a população entra de maneira parecida ao populismo inicial de meio século atrás, por meio de programas assistenciais e compensatórios, consumo popular consignado – uma renda que se extrai de maneira permanente –, e por meio de um mecanismo de recondução desse bloco ao poder, chamado eleições, que não tem nenhum significado político e democrático. É puro marketing de líderes carismáticos. Esse bloco hegemônico está assentado sobre essa fonte de poder, que são os recursos estratégicos, que interessam aos estadunidenses." (3)
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Como se observa, os novos conceitos e categorias ainda não se encontram plenamente definidos; não obstante, afastam-se eles inteiramente, como quer Paulo Arantes e como acreditamos nós, da idéia de ascensão das esquerdas ao poder. (4)
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Muitos equívocos são cometidos quando é discutida a questão das políticas sociais as quais limitam-se, basicamente, a ações assistencialistas. Por um lado, tais práticas são associadas ao "populismo" (5), como se a idéia de populismo se restringisse, tão-só, ao assistencialismo, e, por outro, são tidas como elemento que favorece a redistribuição de renda, como se o objetivo de sua implementação fosse realmente esse. Como sabemos, o assistencialismo hodierno vem sendo empregado como uma forma barata de comprar milhões de votos aos mais desvalidos e não guarda relação mais estreita com o velho populismo de fácies ditatorial; essas políticas, ademais, são tomadas como elemento inibidor do "coronelismo" e, por isso, estariam fazendo com que o clientelismo diminuísse. Ora, na verdade, antes de restringir tais mazelas, as políticas assistenciais as institucionalizaram, criando-se um verdadeiro "Clientelismo de Estado" o qual tem condimentado os discursos insossos devidos a governantes cheios de empáfia – nossos coronéis de novo tipo – e vazios de idéias capazes de transformarem-se em programas sociais efetivamente profícuos.
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É preciso ter claro: o moderno assistencialismo é fruto da democracia e não do populismo comprometido com ditadores, além disso, foi motivado, de início, pelos problemas gerados pela ampliação desbragada da pobreza motivada pela implementação de políticas econômicas neoliberais; posteriormente, governantes oportunistas descobriram nele um método eficaz de conquistar apoio político e o institucionalizaram sem que fosse acompanhado de medidas aptas a gerar emprego e desenvolvimento. Daí, de uma parte, a necessidade de sua continuidade, pois as hordas de miseráveis tornaram-se imensas, e, de outra, sua ineficácia, pois terão de perpetuar-se em face da falta de políticas econômicas desenhadas para enfrentar a falta de empregos e para assegurar o crescimento sustentado.
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Outro engano diz respeito à afirmação segundo a qual nos defrontaríamos, devido ao aumento do preço do petróleo, com o renascimento do nacionalismo. Evidentemente, não se dá o reaparecimento de coisa alguma, mas, sim, a luta dos detentores de recursos naturais por alcançar preços mais elevados e refazer contratos estabelecidos em bases que já lhes eram desfavoráveis e tornaram-se, nos dias de hoje, absolutamente irrealistas.
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De outra parte, o protecionismo – o qual estaria associado ao nacionalismo ressurgente – jamais deixou o proscênio internacional; na verdade sofreu sérias restrições nas nações cujos chefes políticos renderam-se integralmente aos centros hegemônicos mundiais e adotaram as práticas neoliberais pelas quais seus povos viram-se vitimados. Tal processo, no entanto, não se deu nas nações centrais as quais continuaram, placidamente como sempre, a defender irrestritamente seus interesses e suas reservas estratégicas; nem por isso, como sentem na própria carne vários povos, seus dirigentes políticos deixaram de ser adeptos incondicionais do imperialismo para tornarem-se nacionalistas ferrenhos.
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Não há, pois, ressurgimento de nada, apenas ocorre, como avançado acima, a aplicação de velhos preceitos decorrentes do funcionamento do capitalismo: os governantes das nações detentoras de reservas naturais procuram minimizar os prejuízos impostos por contratos lesivos a seus interesses e, dentro do possível, maximizar seus lucros. Destarte, na "Bolívia e na Rússia, as autoridades assumiram o controle direto dos campos de petróleo e gás natural; na Venezuela e no Reino Unido, a opção foi por elevar os impostos; e na Nigéria e no Cazaquistão os governos vêm concedendo tratamento preferencial às estatais petroleiras." (6)
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A adoção de conceitos pouco precisos, de noções genéricas ou de categorias inapropriadas levam, a meu juízo, ao anuviamento das questões e realidades por nós contempladas podendo dificultar a identificação dos problemas com os quais nos defrontamos e falsear as eventuais soluções que venhamos a propor.
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Procurar o refinamento de nosso arsenal analítico constitui, pois, tarefa de todos os interessados em desvendar acuradamente os fenômenos socioeconômicos aos quais votam seus estudos.
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NOTAS
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(1) Entrevista concedida por Paulo Arantes a Igor Fellipe Santos e intitulada: "América Latinha tem nova elite no poder". Jornal Brasil de Fato. São Paulo, 27 de abril a 3 de maio de 2006, p. 8.
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(2) Idem, Ibidem.
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(3) Idem, Ibidem.
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(4) Como sua eleição deu-se muito recentemente, excluo das observações críticas tecidas neste artigo o presidente Evo Morales e seu governo.
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(5) Quanto aos abusos cometidos na utilização do termo populismo veja-se: COSTA, Iraci del Nero da & VALENTIN, Agnaldo. O populismo como réu. Informações FIPE. São Paulo, FIPE, n. 302, p. 22-24, nov. 2005. Disponível em:
http://www.fipe.org.br/publicacoes/bif_edicao.asp?ed=302
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(6) MOUAWAD, Jad (do New York Times). Energia cara aumenta o nacionalismo: países produtores de petróleo e gás, como Bolívia, revêem contratos com multinacionais feitos em época de baixa. Jornal Folha de S.Paulo: caderno dinheiro2, 27 de maio de 2006, p. B19.
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18.5.06

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Lições da crise boliv(ar)iana
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Julio Manuel Pires
Iraci del Nero da Costa
São Paulo, 17 de maio de 2006

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Desde sua eleição, é facilmente identificável o projeto do presidente Luiz Inácio da Silva de arvorar-se como o grande líder, não só da América Latina, mas de todo o denominado Terceiro Mundo. Propunha-se como uma liderança pragmática, assentada numa pretensa unidade de interesses dos países mais pobres e na crítica inócua ao protecionismo dos países desenvolvidos, sobretudo quanto aos produtos agrícolas. Agregavam-se a estas idéias genéricas a proposta de um “Fome Zero mundial”, o perdão da dívida de alguns países africanos e a tentativa de dinamizar as relações comerciais Sul-Sul. A agenda de viagens e de discursos presidenciais enfatizava tais idéias com o intuito principal de propiciar um “verniz esquerdista” a um governo cuja política econômica apresentava nítido corte neoliberal, comprometendo seu prestígio perante os setores mais progressistas da sociedade brasileira.
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Todavia, a despeito dos resultados pífios de tais iniciativas, parecia que, ao menos no âmbito latino-americano, o reconhecimento do presidente brasileiro como a principal liderança de esquerda ainda estava assegurada. No entanto, os eventos recentes na Bolívia vieram a abalar definitivamente a posição postulada pelo dirigente máximo de nosso governo. Neste breve escrito ocupamo-nos, justamente, do vínculo entre esta última questão e o relacionamento entre alguns presidentes latino-americanos e seus respectivos alinhamentos políticos; trata-se, pois, de um tópico lateral – portanto menor – quando pensados os temas efetivamente relevantes em torno dos quais tem orbitado a preocupação dos analistas políticos cujos textos ferem os problemas afetos às Américas. Permitimo-nos, não obstante, duas breves menções a estes últimos. Vejamo-las.
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É interessante notar que a fragmentação dos interesses prevalecentes na América do Sul e a falta de uma coordenação de suas lideranças com vistas a medidas e planos de longo prazo têm proporcionado aos EUA o estabelecimento de contatos bilaterais cada vez mais estreitos com várias nações da área: Chile, Equador, Colômbia, Peru e, como anunciado por seu próprio presidente, o Uruguai. Assim, os norte-americanos, aos quais atribui-se uma postura indiferente com relação ao seu "quintal", têm-se mostrado muito eficientes na busca e consolidação de acordos pontuais que atendam a seus interesses e possam, eventualmente, servir como sucedâneos da tão criticada e indesejável Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
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Uma segunda observação a se impor diz respeito aos recentes golpes desferidos contra a CAN (Comunidade Andina de Nações) – afastamento da Venezuela – e o Mercosul – discordâncias entre os governos da Argentina e do Uruguai e ameaça de saída deste último. Além disso, tais entidades também se vêem atingidas pelas propostas de constituição da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e da CSN (Comunidade Sul-Americana de Nações); estas últimas, além de definirem-se como concorrentes, viriam a levar aquelas primeiras à extinção. Ademais, a promessa ainda nebulosa de construção de um gasoduto de âmbito continental é tomada por muitos analistas como quimérica e causadora de mais confusão nas já abaladas relações entre as nações da CAN e do Mercosul.
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Tal quadro, por si mesmo muito problemático, viu-se ainda mais conturbado por dois eventos recentes os quais colocaram a nu os desencontros existentes entre as lideranças da região. Referimo-nos ao lamentável entrevero diplomático no qual se envolveram os presidentes Evo Morales e Luiz Inácio da Silva e à crise de relacionamento entre os chefes de Estado de quatro nações que se pretendem muito fraternais e amigas: Cuba, Venezuela, Bolívia e Brasil. Esta crônica versa, justamente, sobre esta última questão.
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A ascensão persistente da estrela de Hugo Chávez abriu a luta pela liderança das assim chamadas "esquerdas" latino-americanas, pois o alargamento de seu prestígio deu-se numa quadra em que muitos outros governantes foram eleitos com base em plataformas programáticas contrárias, ainda que apenas em termos retóricos, à continuidade das políticas neoliberais cujo fracasso evidente chamou para si o repúdio das mais diversas camadas socioeconômicas da maioria das nações da área.
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O discurso antiimperialista de Chávez, aliado a sua política interna de teor assistencial, o conduziu a reivindicar a aludida liderança. De outra parte, Fidel Castro, o velho decano das esquerdas latino-americanas, deu seu beneplácito às pretensões chavistas, pois como sabido, recebe – e dele depende – polpudo auxílio econômico da Venezuela. Assim, não pode haver a menor dúvida: Fidel sempre estará disposto a trocar o sorriso amigo do presidente brasileiro pelo rico petróleo de Chávez, a despeito da tentativa de aproximação de nosso governante maior com base numa “relação carinhosa” de irmão mais novo dirigindo-se ao mais idoso.
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Evo Morales, por seu turno, por razões de mesmo feitio, acedeu de bom grado à tutela política disponibilizada pelo presidente venezuelano. Morales, às voltas com o imperialismo, em geral, e, em particular, com a "intervenção" da Petrobras, tida como um avantesma gerado pelo imperialismo brasileiro, mostrou-se, pois, imediatamente disponível para receber a assistência política e econômica de Chávez.
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Estavam postas as condições, assim, para o reconhecimento, por parte de Cuba e da Bolívia, da liderança chavista. Liderança assumida como das esquerdas, independentemente do comportamento efetivo de cada um dos políticos em tela.
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Neste quadro, o presidente brasileiro significou, apenas, uma pequena e incômoda pedra a ser removida do caminho do venezuelano.
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Tendo aderido às práticas neoliberais e comportando-se como um "amigo" dos governantes norte-americanos disposto a lutar para regrar o comportamento de seus pares sul-americanos (1), Luiz Inácio da Silva, além de também reivindicar a liderança almejada por Chávez, passou a utilizar-se da "fraternal amizade" da trinca maior da esquerda latino-americana (Fidel, Chávez e Morales) para posar, sobretudo perante seu público interno – tanto petistas como uma parcela de seus eleitores – como indiscutível líder esquerdista.
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Segundo imaginamos, tamanho "oportunismo" foi denunciado pela tríade tão logo o presidente boliviano viu-se na contingência de cumprir suas promessas de campanha e nacionalizar, muito pertinentemente, o petróleo e o gás de seu país. Como ocorrido com Fidel, aos ouvidos de Morales falaram mais alto seus interesses políticos representados pela assistência técnica e logística de Chávez e pelos votos a conquistar a fim de garantir a vitória nas eleições que se aproximam. Morales colocou um impasse ao governo brasileiro: manter-se coerente com seu discurso esquerdista no âmbito externo ou, atendendo aos rumos adotados internamente, assumir uma postura mais dura nas negociações. O reflexo mais visível desta contradição a que ficou exposto nosso governo foi dado, por um lado, pelo reconhecimento do direito boliviano às medidas de nacionalização e, por outro, pelas ameaças – ora veladas, ora explícitas – enunciadas pelo Ministro das Relações Exteriores e pelo Presidente da Petrobras. Morales, por seu lado, optou por uma tática de avanços e recuos bruscos cujo resultado mais saliente foi o de desmoralizar o governo brasileiro que se via, a cada momento, menosprezado pelo interlocutor boliviano. Destarte, muito embora o presidente do Brasil se tenha mostrado menos desequilibrado, foi, em poucos dias, despojado de seu tão almejado perfil de inconteste líder mundial de esquerda.
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Assim, por razões outras que as ditadas pela pureza ideológica, este trio pouco harmonioso prestou um bom serviço às esquerdas – estejam elas onde estiverem e sejam elas quais forem –, pois retiraram mais uma das máscaras usadas por um minúsculo político de uma América Latina tão pungentemente ferreteada pela mediocridade.
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NOTA
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(1) É significativa a este respeito a fala do encarregado do governo norte-americano para a América Latina, Tom Shannon, a respeito da ameaça representada pelo crescimento da influência de Chávez na área: "Precisamos de sócios estratégicos neste processo, como Colômbia, Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, países que entendam que o que está em jogo é como fazer com que as pessoas tenham um sentimento de pertencimento" ao governo.
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22.4.06

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DESMOBILIZAÇÃO POLÍTICA: DÚVIDAS E QUESTIONAMENTOS
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2006

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Segundo alguns, nos defrontamos no Brasil dos dias correntes com uma marcante desmobilização política da qual uma das evidências é a grande indiferença de muitos segmentos sociais, marcadamente os mais populares, com respeito às práticas ilícitas desenvolvidas no seio do poder executivo central e na Câmara Federal por integrantes da cúpula dirigente do PT. Esta leniência para com os crimes cometidos por petistas e parlamentares de outros partidos seria, assim, apenas o sintoma mais grave e visível da falta de mobilização que abarcaria a vida política em geral.
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Há analistas para os quais a apatia denunciada acima não é um fenômeno recente, mas tem raízes mais profundas em nossa sociedade. Assim, alguns pesquisadores explicam a carência de mobilização em termos do ônus nela envolvido; segundo esse raciocínio, para as camadas menos privilegiadas de nossa sociedade, o custo de ações reivindicatórias revelar-se-ia muito alto em face dos benefícios alcançados. Ou seja, a análise "custo/benefício" é, para tais segmentos, desfavorável à mobilização. A meu ver essa idéia é questionável e simplista, pois se define, de pronto, como um argumento tautológico. Creio necessária uma ampliação do leque analítico concernente ao tópico em foco bem como nele investir mais tempo de reflexão a fim de melhor esquadrinhá-lo dos pontos de vista sociológico, histórico e psicológico.
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Das "Diretas já!" ao momento presente.
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Com referência às "Diretas já!" houve intensa e persistente mobilização popular, participação similar ocorreu quando do impeachment de F. Collor, mutatis mutandis o mesmo poder-se-ia dizer da eleição de Luiz Inácio da Silva: a população respondeu à altura a anos de engodo, marasmo e ortodoxia votando a favor das almejadas mudanças e contra o candidato de FHC.
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E agora, estaríamos vivendo uma quadra marcada pela desmobilização? Ao procurar resposta para esta indagação é preciso ter em conta a campanha eleitoral já desencadeada e em relação à qual, ao menos por ora, parte da população, justamente a menos privilegiada e conhecedora da pobreza, simplesmente está apoiando o atual presidente da República. Teria ocorrido um descolamento da assim chamada "voz do povo" com respeito à opinião pública, à qual aquela primeira sempre tenderia a ajustar-se; com relação a esse fenômeno veja-se crônica de minha autoria intitulada A voz do povo.
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De outra parte, e aqui ainda nos postamos no terreno das campanhas eleitorais, também devemos pensar numa eventual mudança que estaria ocorrendo nesse campo há já algum tempo. A "mobilização", em tempos de eleições, pode ter passado por um processo de globalização e de "terceirização". Não é mais necessário sair às ruas e comparecer a comícios, os quais se tornaram dispensáveis, basta comparecer ao colégio eleitoral; as coisas acontecem como se tudo estivesse profissionalizado: o candidato tornou-se um ator submetido ao marqueteiro, a este cabe a tarefa de "agitação e propaganda", restando ao eleitor, apenas, o asséptico ato de votar. É interessante verificar que, do ponto de vista psíquico, não parece ter havido um "cansaço" quanto à participação, centenas de milhares de pessoas concorrem a shows e bailes de fim de semana e mostram invejável disposição de "participação"; ficam horas dançando e gritando, cantam juntos músicas cujas letras são absolutamente vazias, enfim eles "participam".
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Em face de tais circunstâncias eleitorais é-se levado a afirmar estarmos a vivenciar um momento especial de nossa vida política, momento esse preso à campanha em curso e às próximas eleições. Não obstante tal afirmativa mostrar-se plenamente razoável, o travo amargo da dúvida não nos abandona e somos tentados a considerar a hipótese segundo a qual as alterações não dizem respeito tão-somente a aspectos formais, mas também atingem os elementos referentes ao "conteúdo" da participação política. Não existe mais o mundo socialista a encarnar um ideal redentor apto a catalisar os anseios por melhoras dramáticas da vida social. A queda da URSS e de seus satélites tornou longínqua, impossível mesmo, para imensa parcela da humanidade, a perspectiva de ruptura imediata do modo de produção capitalista. De outra parte, no momento atual clamam alguns poucos, aqui no Brasil, pela luta por objetivos demasiadamente "refinados" (ética, moral etc.) para a grande massa que se dá por feliz por participar do Bolsa Família e ganhar 100 reais por mês; montante esse só desprezível, diga-se com ênfase, aos olhos de pedantes acostumados a uma vida mais do que remediada! Enfim, embora possamos estar a nos defrontar com uma fase particular e passageira de nossa história política, são inegáveis as transformações de fundo ocorridas na área da participação política da população, em geral, e dos eleitores, em particular. De toda sorte, talvez cometam um grave erro de avaliação as pessoas para as quais as condições ora vigentes se confundem com imobilismo político. Vejamos alguns argumentos que negam uma pretensa passividade absoluta e qualificam melhor as particularidades de nossa sociedade.
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O MST não abandonou sua luta.
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Representaria grande falta de sensibilidade não reconhecermos a exuberante mobilização de centena de milhares de pessoas de nosso meio rural; pessoas essas congregadas no MST o qual, inegavelmente, apresenta-se como movimento político articulado. A este respeito cumpre lembrar que, embora mais focado no problema agrário, esse movimento jamais deixou de preocupar-se com outros elementos da vida política nacional. Trata-se, pois, como avançado, de uma pujante e concatenada participação com teor popular da qual muitos de nós – citadinos e integrantes da classe média –, por não recebermos dela influxos diretos, não tomamos plena consciência.
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Serão levados os dirigentes do MST a compor com o atual governo em relação à reeleição do presidente da República? Romperão com um governo distribuidor de "migalhas" (importantes para os que as recebem) incapazes de fugir a assistencialismo caracteristicamente eleiçoeiro; denunciarão os grandes corruptores que se alojaram no PT? Adotarão uma linha pragmática de acordos e compromissos espúrios com o poder? Decidirão não declarar apoio a nenhum candidato? Todas essas portas estão abertas e ainda não é possível antever-se qual será a escolhida; opção esta da mais alta relevância a fim de se qualificar com precisão a direção deste verdadeiro partido político cujas ações, embora não se mostrem todas imunes a eventuais reparos, têm merecido o respeito da maioria das pessoas de esquerda.
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Seja como for, o MST está vivo e atuante; ademais, como anunciado por suas lideranças, pretende estender suas bases ao meio urbano como forma de ganhar a simpatia dos moradores das cidades; ampliar-se-á, pois, ainda mais, sua ação política.
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Uma pitada de História.
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O fato de termos descartado na abertura deste escrito a idéia segundo a qual a apatia teria raízes profundas em nosso passado não implica negar as peculiaridades de nossa sociedade nem as particulares feições que a natureza de nossa formação histórica imprimiu às formas assumidas entre nós pela participação política e às relações entre as camadas subalternas e as elites.
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A meu ver, para nós, brasileiros, a mobilização precisa apresentar um perfil muito bem determinado e não pode ater-se, tão-só, a elementos apenas avaliáveis por uma camada mais preparada em termos educacionais. De outra parte, a mobilização por objetivos muito concretos vinculados à melhoria de vida também não se estabeleceu fortemente entre nós, pois criaram-se, no correr do tempo, outros mecanismos sociais para encaminhar tais reivindicações. Assim, para a massa menos abonada abre-se o apelo aos "coronéis" tenham eles a cara de proprietários de terras, de políticos ou mesmo de membros do clero. Nessa esfera, o objetivo perseguido é uma benesse qualquer: de uma ajuda do tipo do Bolsa Família a empregos públicos de baixa remuneração e pouco exigentes em termos de preparo escolar. Já as camadas médias também se servem do mesmo expediente, socorrendo-se de políticos e amigos influentes para conseguirem boas colocações no emprego público, matrícula em escolas de superior qualidade para seus filhos etc.
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Não sei até que ponto esse universo de favores continua a operar generalizadamente dessa maneira hoje em dia, mas até há pouco era assim que se procurava, em primeira instância, alcançar uma melhora das condições de vida; o recente caso de um ex-presidente da Câmara Federal o qual se jactava de defender bêbados infratores e é tido como patrocinador de um Ministro está a indicar o quão fortes ainda se mostram as práticas aqui referidas.
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Como se pode imaginar, tais modos de agir tendem a arrefecer tanto a luta por melhorias de caráter geral como atuam no sentido de fazer socialmente "aceitáveis" comportamentos menos rígidos por parte dos políticos e do poder executivo; pois, "com base neles poderemos alcançar nossos objetivos" pensariam os que pretendem buscar a ajuda dos "donos do poder"! Enfim, tento caracterizar aqui o quadro secularmente imperante entre nós, valendo ele, não só para a classe média, mas também para as camadas menos privilegiadas. Não obstante isso, foi notável a mobilização pelas "Diretas já!" e contra a continuidade de F. Collor no poder; como avançado, tais movimentos giraram em torno de questões muito bem determinadas e que se distinguiam por sua generalidade, vale dizer, diziam respeito à vida de largas parcelas da população, embora fugissem de aspectos imediatamente vinculados à elevação do padrão material de vida.
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A empresa como uma grande família.
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Uma outra ordem de raciocínio diz respeito ao que se tem visto ocorrer entre os trabalhadores das empresas privadas. Nos quadros de uma economia com baixo crescimento e na qual prevalece um alto nível de desemprego as práticas neoliberais encontraram um campo fértil para espraiarem-se. Assim, dá-se a generalização de técnicas desenhadas para incorporar às relações entre os trabalhadores e as empresas comportamentos próprios dos existentes no âmbito da amizade ou na esfera familiar. A empresa passa a definir-se como uma grande família, com respeito à qual deve, o trabalhador, preocupar-se em grau semelhante ao que dedica a seus familiares. No Brasil alguns "consultores" têm proposto uma forma de ação surgida na Inglaterra a qual propõe a substituição do cumprimento formal pelo abraço, pois tal tipo de confraternização eliminaria as barreiras existentes entre a direção e o trabalhador direto, agindo sobre este último de sorte a torná-lo um parceiro efetivo dos proprietários dos negócios; o interessante é que, ao "medirem" os efeitos da introdução deste método, os ditos consultores o fazem em termos de aumento de produtividade, baixa no número de empregados despedidos por motivo de choques com quadros dirigentes superiores e queda no número de faltas decorrentes de estresse. Como sabido, nessa área a idéia básica é fazer o trabalhador "vestir a camisa" da empresa. Assim, a sorte do trabalhador, sua estabilidade no emprego e o bem-estar de sua família confundem-se com o desempenho e com os lucros da empresa. Como os trabalhadores diretos, os quadros diretivos também vêem-se pressionados a "aproximarem-se" daqueles primeiros.
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De outra parte, a constituição de equipes relativamente autônomas de trabalho visa, como sabemos, a substituir parte substantiva dos controles; tais equipes, ademais, atuam no sentido de rebaixar o absenteísmo, o número de horas extras trabalhadas (quando ocorre uma falta cumpre aos próprios membros da equipe dar conta da atividade do elemento ausente), de aumentar a produtividade e de estabelecer um ambiente de autocontrole, enfim tudo funciona com o objetivo central de baixar os custos de produção. Pois bem, em face desse panorama não há qualquer dúvida sobre o fato de vivermos uma quadra caracterizada pela existência, na esfera das empresas, de uma ação explícita e programada de desmobilização generalizada dos trabalhadores. A pergunta a fazer reza: em que medida tais formas de atuação agem sobre a mobilização política da massa de trabalhadores? Sentir-se-ão eles menos motivados a lutar por reivindicações de fundo mais genérico? Embora nossa resposta não possa ser categórica, um "talvez sim" nos parece plausível.
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Uma consideração de ordem psicológica.
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A par das alterações em curso na forma e no conteúdo da participação política da população brasileira vivemos, além de outros aspectos já referidos acima, um momento histórico profundamente vincado pela imensa decepção causada pelo PT e pelo atual governo central. Assim, o sentimento de desmobilização e de apatia, que toma a muitos, certamente está penetrado por um expressivo componente de teor psicológico. Nesse sentido não parece descabido pensar-se numa "desmobilização psicológica" a qual estaria a refletir nossa sensação de impotência quanto à possibilidade de chegarmos a mudanças significativas na vida política nacional.
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Destarte, a impressão de que a mobilização política deixou de existir decorreria de vários fatores: de nossa frustração com um partido e um governante que se perderam na inação, renunciaram a seu passado, a seus compromissos e enlearam-se em uma repugnante teia de crimes econômicos e políticos; do aludido sentimento de impotência quanto à efetivação de mudanças e, por fim, da falta de perspectivas concretas de encontrarmos agentes políticos (e aqui penso tanto em pessoas como em organizações políticas) capazes de canalizarem e conduzirem ordenadamente a luta política pela superação da situação hoje reinante. Vale dizer, a "desmobilização" refere-se tanto ao passado recente como ao futuro imediato, ambos esvaziados pela defecção petista.
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Creio desnecessário lembrar que não estou a tratar a assim chamada "desmobilização psicológica" como mera ilusão de eleitores desalentados e desvairados; vinculei-a, bem claramente, a fatos cuja existência revela-se insofismável.
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Fecho para um discurso inconcluso.
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Como se depreende de seu título, não busquei expor neste breve texto conclusões relativas a um tema com respeito ao qual tenho muitas dúvidas e nenhuma certeza.
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Deixo inconcluso, pois, este texto, ficando no aguardo dos que possam esmiuçar mais percuciente e detidamente os problemas aventados.
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Aventurei-me a divulgá-lo visando a expor minha ignorância, permitindo-me, assim, o direito de lançar um repto aos mais capazes: tomem para si a incumbência de encarar os questionamentos aqui reportados.
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12.4.06

A VOZ DO POVO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2006

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Talvez seja estimulante determo-nos na reconsideração de como a conhecida existência de três condicionantes inter-relacionados afeta, no momento histórico presente, a orientação da política brasileira e, em particular, na revisão de seu papel no enfrentamento da crise política ora defrontada pelo país.
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Contamos, desde sempre, com uma elite socialmente irresponsável, que "herdou" o Brasil dos portugueses não tendo sido obrigada a assumir, quando tomou a direção do país nascente, nenhum compromisso com as necessidades e valores da nação e de seu povo. De outra parte, desde os primórdios da colonização, conhecemos o adensamento de uma massa de desvalidos, excluída em larga medida de conquistas sociais de caráter universal, da cidadania efetiva e das parcelas mais substanciais das benesses geradas pelo crescimento econômico; trata-se, como sabido, da massa do povo, ou simplesmente do "povo" ou do "povão". Por fim, constituiu-se no correr do tempo uma classe média composta por vários estratos e ampla o bastante para atuar como um fator político capaz de, num quadro de composição com a elite dominante, alcançar o atendimento de alguns de seus pleitos criando, em contrapartida, um clima de concórdia mediante o qual os mais graves problemas enfrentados pelo país e pelo "povão" sistematicamente são deixados de lado ou tratados de maneira perfunctória sem se chegar decisivamente às questões de fundo e às soluções efetivamente transformadoras necessárias a que a Nação, como um todo, possa desenvolver-se sem as travas impostas por uma secular dívida social sempre crescente.
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Neste pano de fundo definem-se cinco elementos que se colocam em duas categorias distintas. De uma parte encontramos dois deles, a "opinião pública" e o que se tem chamado de "voz do povo" – aqui entendida como a manifestação das opções políticas da massa menos aquinhoada de nossa população. Por outro lado, nos deparamos com os três grupamentos socioeconômicos e políticos acima referidos: as elites, compostas de grupos que buscam albergar-se em seus nichos econômicos e de interesses, deles saindo apenas pelas suas reivindicações específicas ou quando chamados pelas "grandes causas" comuns à elite como um todo; as camadas médias integradas por distintas faixas e, por fim, a massa popular a qual, por ainda não haver conseguido estruturar-se de maneira orgânica, não raras vezes vê-se usada e manipulada pelos dois outros entes sociais aqui contemplados.
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Os segmentos médios, cuja postura e cujas ações tendem abertamente para a conciliação e os arranjos de todos os tipos, têm alcançado seus objetivos – sempre limitados, tenha-se presente – sem o emprego de métodos mais arrojados e sem demonstrar autonomia plena. Por via de regra, apegam-se às elites delas extraindo uma ou outra concessão que atenda a suas demandas. Mesmo o movimento tenentista, o mais audacioso e independente de todos os promovidos pelas camadas médias, viu-se, ao fim e ao cabo, engolfado pela elite política e econômica, a qual transformou-se e "modernizou-se", é verdade, mas manteve sua essência dominante e cruelmente excludente.
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Com respeito à última observação posta acima, cumpre enfatizar a secular permanência dos elementos nucleares característicos da elite brasileira, os quais, praticamente intocados, têm atravessado séculos. Tem ela, assim, mantido um comportamento absolutamente irresponsável do ponto de vista social, enquanto se revela portadora de extrema agilidade e capacidade inovadora quando apreciada da perspectiva econômica.
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Na verdade, a "iniciativa privada" viu-se habilmente mobilizada pela Coroa portuguesa para a tarefa de constituição, "construção", da colônia brasileira. Assim, a formação do Brasil deve-se, na mais ampla medida, ao capital privado e nesse sentido é obra e "propriedade" dos "avoengos" daquelas elites. Ademais, na medida em que não conhecemos uma revolução burguesa clássica, os donos de nossa economia simplesmente se apossaram do poder político sem a necessidade de estabelecerem qualquer acordo com a massa da população brasileira. Isso fez das elites senhoras efetivas do poder e do Estado; a seus olhos, elas não tomaram ou tomam nada do Estado, apenas sentem-se como administradoras de algo que é seu. A idéia de uma vida Republicana aparece, assim, como uma tentativa de usurpação da qual as elites são vítimas. Os episódios deprimentes envolvendo, não há muito, a queda do presidente da Câmara Federal, assim como a maneira rasteira de pensar de tal político, ilustram com notável clareza o quão fortes ainda se mostram os métodos e as construções ideológicas herdadas de antanho.
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A grande massa popular que não conhece, como avançado, a organicidade indispensável ao desenvolvimento de ações globalmente coordenadas, ou se vê embaída pelos dois outros grupos, ou se restringe a ações tateantes e sem direcionamento seguro, ou se dá a atos mais ou menos desesperados, mais inspirados pela paixão do que pela razão. A respeito desta última questão impõe-se a lembrança de Canudos, com Antônio Conselheiro e seus seguidores, assim como a de outros movimentos messiânicos aos quais filiam-se a Guerra do Contestado e o culto votado ao Padre Cícero Romão.
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Note-se, pois, não ter ainda, nossa massa popular, alcançado, do ponto de vista político, nível bastante para organizar-se de modo autônomo e para dirigir suas lutas de maneira conseqüente e apta a fazê-la alcançar plenamente seus objetivos. Nesse sentido, pode-se afirmar ser tal massa popular passível de sofrer a influência imediata das camadas médias; tal fenômeno – comum aos movimentos populares, diga-se desde logo – observou-se com respeito aos partidos de esquerda no primeiro meado do século XX e repetiu-se nos casos do PT e do MST.
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Elites, camadas médias e massa popular, a meu ver nossas análises políticas sempre terão de se ocupar com a presença desses três vetores, cada um dos quais, note-se, nem sempre se apresenta com o mesmo peso e perfil. Vale dizer, a força de cada um é mutável e não segue um padrão ou tendência histórica definida. Ademais, como não poderia deixar de ser quando se trata de "movimentos" interdependentes, os alinhamentos e composições também nos oferecem desenhos variáveis. Assim, enfrentam-se dificuldades não só para "explicar" o que foi, como, e sobretudo, para divisar os caminhos que serão selecionados por u'a massa de eleitores a qual, definido o rumo a ser tomado, parece persegui-lo de modo determinado.
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Ao considerarem os três segmentos sociais acima referidos os analistas sempre o fizeram tendo em conta a opinião pública, à qual, mais cedo ou mais tarde, acabava por se vergar a vontade política das massas populares. Tais condimentos, não obstante, nos parecem insuficientes no momento presente, pois a eles somou-se um novo "complicador", qual seja, o forte peso assumido pela assim chamada "voz do povo" a qual, ainda que provisória e temporariamente, desgarrou-se de suas peias.
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Tendo em vista o acima posto, e em face da profunda crise política pela qual nos vemos envolvidos nos dias correntes, sou levado a crer na ocorrência de dois descolamentos muito relevantes: por um lado, o presidente da República continua a receber substantivo número de indicações nas pesquisas eleitorais efetuadas nos últimos meses, fato este a indicar que sua candidatura não foi abalada profundamente pela crise; de outra parte, a condicionar esse primeiro fenômeno, observa-se que a "voz do povo" desprendeu-se, ao menos na quadra ora vivenciada, da opinião pública, cuja formação, como sabido, dá-se, sob o influxo das elites dominantes, no seio das parcelas mais esclarecidas das classes médias. É justamente este último evento o mais saliente de todas as ocorrências políticas dos últimos tempos. Como bem lembram os analistas políticos a política assistencialista desenvolvida há anos, mas amplamente incrementada pelo atual governo, chegou efetivamente às bases mais carentes da massa da população brasileira dela recebendo a devida resposta, qual seja, o apoio à reeleição de Luiz Inácio da Silva. O presidente foi conduzido a tal condição pela reação por ele oferecida à crise gerada pelos desmandos e crimes cometidos pelos quadros do PT. Como sabido, o presidente da República, além de aproximar-se do "povão" e a este dirigir seu discurso em busca de um escudo que o resguardasse, acelerou e ampliou os programas de teor assistencialista – necessários e indispensáveis na atual quadra, diga-se com firmeza – de sorte a fazê-los, de fato, alcançar um grande número de famílias extremamente necessitadas. Como avançado, as pesquisas de opinião logo apontaram o quão frutífera é tal forma de atuação reforçando a determinação presidencial de alargar aqueles programas e funcionando como o combustível que tem alimentado a empáfia e a segurança demonstradas por um governante moralmente falido.
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Assim, e isto o atual presidente parece ter percebido claramente, a repulsa aos métodos e práticas implementados pelo PT e por seus dirigentes mais graduados confina-se a uma parcela expressiva, porém minoritária, do eleitorado mais abonado: um número menor vinculado às elites dominantes e um número bem maior de homens e mulheres pertencentes às camadas média.
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Se o quadro aqui bosquejado estiver correto e o atual presidente da República reeleger-se estaremos, realmente, em situação muito crítica. Isto porque será demonstrado que, com um porcentual mínimo do PIB, tornou-se possível "comprar" a presidência com base em políticas assistencialistas incapazes, de maneira isolada e sem enquadrar-se em um plano global para a economia nacional, de nos oferecerem a procurada solução para os graves problemas socioeconômicos que nos afligem. Ademais, além de perdermos parte ponderável das ótimas oportunidades decorrentes do dinamismo ora imperante na órbita do comércio internacional, sofreremos perdas político-ideológicas imensas com respeito a parcela substantiva do eleitorado a qual, ciente da permanência no poder de um partido totalmente desmoralizado e de um presidente politicamente fraco e desfibrado, poderá vir a colocar em novo patamar a repugnância pela vida política em geral, deixando, eventualmente, de perceber dever-se tal situação ao perverso sistema político ora vigente, o qual propicia as distorções da vivência democrática por nós testemunhadas nos últimos lustros, deturpações estas as quais, para nossa infelicidade, espraiaram-se, em maior ou menor grau, pelos três poderes máximos da República.
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Por outro lado, caso não ocorra a reeleição do atual ocupante do Palácio do Planalto, ver-nos-emos igualmente mal servidos, pois mais uma vez estaremos entregues aos representantes imediatos da velha elite cujas raízes se confundem com o próprio nascimento do Brasil.
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23.3.06

TUDO QUE ERA SÓLIDO...
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, março de 2006
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Desde o processo de redemocratização vivenciado em decorrência da lenta, gradual e nem tão segura supressão do regime militar, nossas instituições democráticas nunca se viram tão fragilizadas como no momento presente. São elas, ademais, recorrentemente desmoralizadas por ações adotadas por seus próprios integrantes.
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No correr dos dois últimos governos, a ânsia do PSDB e do PT em assenhorearem-se do poder a qualquer custo culminou por solapar as bases de sustentação da Câmara Federal, dilapidar a respeitabilidade do Ministério da Justiça, corroer a soberania do STF, além de contribuir para abalar de modo definitivo a já reduzida capacidade de ação e de resistência dos atuais membros do Senado Federal.
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Embora a Nação pareça liquefeita e revele uma apatia catatônica com respeito aos repetidos atos de desrespeito às normas legais e aos preceitos reguladores de nossas mais altas instâncias Republicanas praticados por nossos principais atores políticos e por demais autoridades que compõem os quadros dos três poderes máximos da vida nacional, faz-se necessário denunciar a todos os homens de boa vontade a situação anômala com a qual nos defrontamos nesta quadra tamanhamente acabrunhadora.
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A meu juízo, muito pouco poder-se-á fazer contra a enormidade das calamidades que nos assolam, pois não nos restaram opções políticas bastantes para cimentar caminhos que nos conduzam à superação dos problemas pelos quais nos vemos enleados.
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De uma parte, uma oposição tão descaracterizada quanto o Governo central e que a nada parece opor-se, pois a ela coube definir as bases da atual política econômica e refinar os velhos métodos de deterioração das instituições herdados de um passado mesquinho e apoucado.
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Do Governo central, por outro lado, nada se pode esperar; os Ministérios mostram-se inoperantes, o Presidente não governa e se compromete, tão-só, com atos vazios de sentido concreto e desenhados, exclusivamente, para promover sua reeleição. Muitos dirigentes petistas, por seu turno, perderam-se nos meandros de ações ilegais ou entoam declarações patéticas que, por seu descabimento, nos constrangem, e, pela desfaçatez, os aviltam.
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Quanto à oposição acima referida, pode-se alegar não ter ela traído nossas esperanças como o fizeram os próceres e a direção do PT sob a liderança do presidente da República. Assim, se estes últimos devem ser descartados in limine, aqueles primeiros mereceriam atenção à parte. Tal argumento, no entanto, é insustentável, pois não nos sentimos traídos justamente porque não esperávamos deles nada de especial, vale dizer, desempenharam o papel que deles se esperava: nada fizeram em favor da nação e da solução de nossos imensos problemas, pelo contrário, operaram de sorte a agravá-los; mostram-se, pois, tão rejeitáveis quanto as lideranças petistas.
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Afora os militantes e simpatizantes de vários partidos cuja dignidade e respeitabilidade estão acima dos comentários tecidos nesta crônica há, evidentemente, um grupo de parlamentares igualmente impolutos. Pouco numerosos e filiados a distintas agremiações políticas, não chegam estes últimos a compor massa crítica suficiente para gerar, ao menos por ora, uma força política capaz de servir como agente catalisador da vontade nacional por renovação e pela solução efetiva dos óbices ao nosso pleno amadurecimento político, econômico e social. A eles talvez tenham de se apegar os eleitores desejosos de evidenciarem sua insatisfação com o quadro político vigente. Esta, aliás, parece ser a única atitude recomendável e plenamente aceitável quando se pensa em termos do poder legislativo. De outra parte, quando se considera a órbita dos cargos eletivos para o poder executivo manda a honestidade intelectual reconhecermos não ser condenável o voto nulo, forma dramática de explicitarmos nossa repugnância em face da condição política degradante prevalecente nos dias correntes.
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2.3.06

UMA FARSA CÔMODA E FUNCIONAL


Iraci del Nero da Costa



Nos últimos lustros temos sido vitimados por um deprimente, porém elucidativo, espetáculo protagonizado pelos dirigentes políticos que se dispuseram a promover as práticas neoliberais no plano do poder central da República. Pensamos aqui no relacionamento entre o presidente da República e os diretores do Banco Central, de uma parte, e o ministro da Fazenda, de outra. Relacionamento este que tendeu a institucionalizar-se nos dois últimos governos. A mascarada está em aquele primeiro tomar estes últimos como entes inamovíveis e colocados fora de sua esfera de responsabilidade. Tal modus operandi tem possibilitado ao presidente criticar sua própria política econômica, comportando-se como opositor de seu próprio governo. Pensa ele, assim, safar-se das críticas dirigidas às práticas econômicas pelas quais é, constitucionalmente, responsável direto.

Ademais, implementa-se, sob a égide do Banco Central, uma política de juros rasteira do ponto de vista teórico e prático e rastejante quando considerados os interesses do capital financeiro especulativo e do sistema bancário. Nos defrontamos, assim, com a decantada independência dessa instituição; a qual não veio pela lei, pois impôs-se mansamente sem contestações maiores.

Já ao Ministério da Fazenda cumpre efetuar os cortes de verbas necessários à manutenção de um elevado superávit primário e dar aval à política cambial descaradamente voltada contra os interesses da Nação.

E tudo se passa, no palco das fantasias propaladas por esses atores de fancaria, como se os acontecimentos ocorressem à revelia da presidência da República.

Tal situação "beneficia" todos os agentes envolvidos direta ou indiretamente nessa farsa grotesca. Os analistas políticos interessados em demonstrar "bom comportamento" podem evitar críticas diretas ao dito chefe da Nação; o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central valorizam-se perante o poder central deitando raízes profundas num governo raso e sem densidade alguma; por fim, o governante máximo da República vê-se protegido pelo anteparo representado pelos meros implementadores de suas decisões na área econômica.

Por outro lado, os eventuais descontentamentos manifestados por correligionários ou militantes encontram sólidos moinhos quiméricos contra os quais poderão lançar suas críticas; terçando assim, sempre inutilmente, por suas propostas alternativas.
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Trata-se, é evidente, de um arranjo cuja funcionalidade foi amplamente comprovada e mediante o qual se aplica uma política desenhada com esquadros neoliberais sem o comprometimento político do assim chamado chefe da Nação. Este, por seu turno, apoiado em práticas demagógicas e suspeitas, que vão do assistencialismo aos mais desvalidos à manipulação desabrida do Congresso Nacional, pode – com a tranqüilidade oferecida por uma total irresponsabilidade política e com o tempo disponível propiciado pela falta de um programa efetivo de governo a ser implementado – cuidar, em tempo integral, de sua reeleição quando no primeiro mandato ou de suas memórias quando já cumpre seu longo período de despedida de um poder que o acaso lhe outorgou pelas mãos de uma nação de bestificados e do qual só fez uso para servir a caprichos pessoais desprezíveis e ao grande capital.