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A DEMOCRACIA E OS DIREITOS DE CIDADANIA APONTAM PARA ALÉM DO CAPITALISMO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, outubro de 2005
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A democracia – entendida aqui como a estrita obediência às decisões tomadas pela maioria segundo normas de legalidade permanentes e consensuais e com total observância do respeito devido aos direitos e à livre expressão e organização das minorias – assim como os direitos de cidadania – os quais, a nosso juízo, consubstanciam, obviamente num todo uno, o conjunto dos direitos do homem e do cidadão – assumiram, nos dias correntes, papel central quanto ao caminho futuro da história da humanidade e, em particular, quanto aos destinos das correntes políticas de esquerda.
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A condicionar tal relevância primordial conjugam-se três elementos principais: a definitiva derrocada do socialismo real; o processo conhecido como globalização o qual caracterizou-se, basicamente, pela mundialização dos interesses das grandes corporações e conglomerados econômicos e do qual decorreu a internalização de tais interesses por parte das nações periféricas; e, por fim, o comportamento dos EUA em face do fato de se haver tornado a nação hegemônica no cenário mundial e, em particular, a maneira irracional e calcada em inverdades de sua reação aos ataques terroristas pelos quais foram vitimados e o caráter reacionário do pensamento ideológico que, a contar de então, passou a predominar largamente no seio de seus principais grupamentos políticos e de expressiva parcela de suas demais instituições sociais. Consideremos mais detidamente os fenômenos aqui apontados e as implicações políticas que deles poderão decorrer.
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A superação efetiva do chamado socialismo real trouxe para a ordem do dia dos teóricos da esquerda de corte marxista, como item essencial, a necessidade de um verdadeiro aggiornamento ideológico. Parece ter ficado evidenciado claramente representarem a democracia e os direitos de cidadania componentes fulcrais de qualquer formulação comprometida com o estabelecimento de uma sociedade apta a oferecer ao homem condições de vida material e de existência espiritual superiores às vigentes no modo de produção capitalista. Logo, é impossível pensar-se uma nova forma de sociabilidade – socialista, caso se queira chamá-la assim – sem admitir que ela terá de assentar-se, necessariamente, sobre três princípios basilares: a inexistência da propriedade privada sobre os meios de produção, a vivência democrática e o absoluto acatamento dos direitos de cidadania tomados em sua integralidade.(1)
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Destarte, garantir a plena vigência da democracia e "lutar" pelo socialismo, além de se mostrarem tópicos políticos indissociáveis, correspondem a um só e único objetivo, não podendo, portanto, serem contemplados como instâncias táticas e/ou estratégicas distintas.
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Fixado este primeiro ponto, atenhamo-nos às questões suscitadas pela globalização.
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A adoção de práticas econômicas ditadas pelos neoclássicos e incorporadas pela ideologia neoliberal acarretou, tanto em países mais avançados como em nações subdesenvolvidas, um leque de retrocessos socioeconômicos no qual compareceram, segundo distintos graus de intensidade, as seguintes mazelas: desindustrialização, maior concentração da renda e da riqueza, desemprego aberto e larga ampliação do mercado informal de trabalho; a par disso, direitos trabalhistas e previdenciários viram-se duramente atingidos, a proteção propiciada pelo Estado aos trabalhadores foi reduzida, ocorrendo o mesmo no âmbito dos serviços sociais em geral: saúde, educação, segurança e habitação. Correlatamente, em muitas nações a emigração desordenada de deserdados aumentou dramaticamente afetando a vida de milhões de pessoas, a cujas carências materiais somaram-se incontáveis padecimentos de ordem moral e o dolorido desenraizamento com respeito às suas plagas natais. Não obstante o tamanho incomensurável dos prejuízos já havidos, poderão vir a se dar novos cortes na esfera econômica e na órbita dos direitos políticos e trabalhistas de há muito adquiridos.
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Enfim, para os desprivilegiados, a globalização sinonimiza com perdas econômicas e políticas, sendo de se esperar a ocorrência de mais pressões nesses dois campos. Assim, apenas a resistência democrática e a reconquista dos direitos perdidos serão capazes de barrar os avanços das práticas lesivas impostas pela globalização. Disso se infere a existência de um elo imediato entre o combate ao neoliberalismo e a ação voltada à defesa dos direitos democráticas e de cidadania.
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Vejamos, num terceiro e último lapso, os problemas afetos à traumática atuação político-militar, em escala planetária, dos norte-americanos.
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Embora a guerra promovida no Afeganistão contra seus ex-parceiros do Talibã e da Al Qaeda e a desencadeada no Iraque contra um outro seu ex-aliado representem a continuidade(2) da política intervencionista norte-americana, sobretudo a aventura contra Saddam Hussein enriqueceu sobremaneira o currículo do militarismo dos EUA. Como sabido, a motivação aventada para a derrubada do regime iraquiano cingiu-se a um aranhol de mentiras e de informações forjadas as quais não resistiram à análise mais superficial e encontraram na ONU e nos próprios parceiros dos EUA seus primeiros críticos; isso para não lembrar os norte-americanos isentos que, desde a primeira hora, postaram-se contra o discurso insano de George W. Bush e as descabidas operações de guerra por ele capitaneadas. De toda sorte, o mínimo a dizer é que a farsa tragicamente encenada no Iraque significa um golpe dos mais fortes contra as normas consensualmente pactuadas no âmbito da ONU e consagradas pelo direito internacional e uma clara falta de subordinação à verdade dos fatos, sem a qual é impossível imaginar-se um mundo autenticamente democrático.
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Ademais, as humilhações, torturas e cerceamento extremado dos direitos – internacionalmente reconhecidos – dos prisioneiros mantidos nas prisões norte-americanas existentes no Afeganistão, no Iraque e em sua base cubana de Guantánamo demonstram até que ponto as forças militares norte-americanas e os atuais ocupantes da Casa Branca estão dispostos a levar a negação dos direitos de cidadania. Anunciam, de outra parte, que o severo cerceamento de liberdades, já imposto aos próprios norte-americanos e demais residentes em solo dos EUA, poderá ser alargado golpeando ainda mais fundamente direitos secularmente observados.
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Cumpre lembrar, por fim, já ter sido denunciado várias vezes o vínculo deletério, porque relacionado com a corrupção, existente entre detentores de altos cargos no governo norte-americano e conglomerados transnacionais cujas atividades distribuem-se por uma variada gama de atividades econômicas.
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Em suma, a união das teses de políticos ultraconservadores com os interesses da indústria de armamentos e os de conglomerados econômicos ligados aos ramos do petróleo e da indústria de "reconstrução" representa, juntamente com o processo maior de globalização, uma séria ameaça às liberdades, pois a persistência de tal aliança conduzirá os governos centrais, sob a égide dos EUA, a limitarem crescentemente, em nível mundial, os interesses da cidadania, o Estado de direito e o alcance das deliberações democraticamente concertadas.
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Caso este quadro venha a se verificar explicitar-se-ão os entraves do capitalismo com referência à democracia e aos direitos de cidadania; assim, a luta de resistência e reconquista de direitos por parte da esquerda terá de se ocupar de tais forças retrógradas de sorte a assegurar a efetivação das resoluções democraticamente alicerçadas e impedir o solapamento do Estado de direito. A luta pela democracia e pelos direitos de cidadania, elementos indispensáveis à constituição de uma eventual sociabilidade a ser instaurada futuramente, aponta, pois, para além das limitações próprias do modo de produção ora dominante.
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Evidentemente, com esta nossa constatação não pretendemos propor, aos que tomam o socialismo como algo desejável, um programa de atuação política balizado, tão-só, pela defesa da democracia e dos aludidos direitos. Abalançamo-nos, no entanto, a afirmar que, na elaboração da referida plataforma, deve ser emprestada importância máxima aos dois fatores aqui realçados.
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NOTAS
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(1) Sobre esta questão permitimo-nos indicar aos interessados a leitura do artigo: COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, J. F. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.
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(2) Sobre tal "continuidade" veja-se: COSTA, Iraci del Nero da. "E agora, Você?". Informações FIPE [boletim eletrônico]. São Paulo, FIPE, n. 267, p. 25, 2002.
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A DEMOCRACIA E OS DIREITOS DE CIDADANIA APONTAM PARA ALÉM DO CAPITALISMO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, outubro de 2005
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A democracia – entendida aqui como a estrita obediência às decisões tomadas pela maioria segundo normas de legalidade permanentes e consensuais e com total observância do respeito devido aos direitos e à livre expressão e organização das minorias – assim como os direitos de cidadania – os quais, a nosso juízo, consubstanciam, obviamente num todo uno, o conjunto dos direitos do homem e do cidadão – assumiram, nos dias correntes, papel central quanto ao caminho futuro da história da humanidade e, em particular, quanto aos destinos das correntes políticas de esquerda.
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A condicionar tal relevância primordial conjugam-se três elementos principais: a definitiva derrocada do socialismo real; o processo conhecido como globalização o qual caracterizou-se, basicamente, pela mundialização dos interesses das grandes corporações e conglomerados econômicos e do qual decorreu a internalização de tais interesses por parte das nações periféricas; e, por fim, o comportamento dos EUA em face do fato de se haver tornado a nação hegemônica no cenário mundial e, em particular, a maneira irracional e calcada em inverdades de sua reação aos ataques terroristas pelos quais foram vitimados e o caráter reacionário do pensamento ideológico que, a contar de então, passou a predominar largamente no seio de seus principais grupamentos políticos e de expressiva parcela de suas demais instituições sociais. Consideremos mais detidamente os fenômenos aqui apontados e as implicações políticas que deles poderão decorrer.
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A superação efetiva do chamado socialismo real trouxe para a ordem do dia dos teóricos da esquerda de corte marxista, como item essencial, a necessidade de um verdadeiro aggiornamento ideológico. Parece ter ficado evidenciado claramente representarem a democracia e os direitos de cidadania componentes fulcrais de qualquer formulação comprometida com o estabelecimento de uma sociedade apta a oferecer ao homem condições de vida material e de existência espiritual superiores às vigentes no modo de produção capitalista. Logo, é impossível pensar-se uma nova forma de sociabilidade – socialista, caso se queira chamá-la assim – sem admitir que ela terá de assentar-se, necessariamente, sobre três princípios basilares: a inexistência da propriedade privada sobre os meios de produção, a vivência democrática e o absoluto acatamento dos direitos de cidadania tomados em sua integralidade.(1)
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Destarte, garantir a plena vigência da democracia e "lutar" pelo socialismo, além de se mostrarem tópicos políticos indissociáveis, correspondem a um só e único objetivo, não podendo, portanto, serem contemplados como instâncias táticas e/ou estratégicas distintas.
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Fixado este primeiro ponto, atenhamo-nos às questões suscitadas pela globalização.
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A adoção de práticas econômicas ditadas pelos neoclássicos e incorporadas pela ideologia neoliberal acarretou, tanto em países mais avançados como em nações subdesenvolvidas, um leque de retrocessos socioeconômicos no qual compareceram, segundo distintos graus de intensidade, as seguintes mazelas: desindustrialização, maior concentração da renda e da riqueza, desemprego aberto e larga ampliação do mercado informal de trabalho; a par disso, direitos trabalhistas e previdenciários viram-se duramente atingidos, a proteção propiciada pelo Estado aos trabalhadores foi reduzida, ocorrendo o mesmo no âmbito dos serviços sociais em geral: saúde, educação, segurança e habitação. Correlatamente, em muitas nações a emigração desordenada de deserdados aumentou dramaticamente afetando a vida de milhões de pessoas, a cujas carências materiais somaram-se incontáveis padecimentos de ordem moral e o dolorido desenraizamento com respeito às suas plagas natais. Não obstante o tamanho incomensurável dos prejuízos já havidos, poderão vir a se dar novos cortes na esfera econômica e na órbita dos direitos políticos e trabalhistas de há muito adquiridos.
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Enfim, para os desprivilegiados, a globalização sinonimiza com perdas econômicas e políticas, sendo de se esperar a ocorrência de mais pressões nesses dois campos. Assim, apenas a resistência democrática e a reconquista dos direitos perdidos serão capazes de barrar os avanços das práticas lesivas impostas pela globalização. Disso se infere a existência de um elo imediato entre o combate ao neoliberalismo e a ação voltada à defesa dos direitos democráticas e de cidadania.
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Vejamos, num terceiro e último lapso, os problemas afetos à traumática atuação político-militar, em escala planetária, dos norte-americanos.
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Embora a guerra promovida no Afeganistão contra seus ex-parceiros do Talibã e da Al Qaeda e a desencadeada no Iraque contra um outro seu ex-aliado representem a continuidade(2) da política intervencionista norte-americana, sobretudo a aventura contra Saddam Hussein enriqueceu sobremaneira o currículo do militarismo dos EUA. Como sabido, a motivação aventada para a derrubada do regime iraquiano cingiu-se a um aranhol de mentiras e de informações forjadas as quais não resistiram à análise mais superficial e encontraram na ONU e nos próprios parceiros dos EUA seus primeiros críticos; isso para não lembrar os norte-americanos isentos que, desde a primeira hora, postaram-se contra o discurso insano de George W. Bush e as descabidas operações de guerra por ele capitaneadas. De toda sorte, o mínimo a dizer é que a farsa tragicamente encenada no Iraque significa um golpe dos mais fortes contra as normas consensualmente pactuadas no âmbito da ONU e consagradas pelo direito internacional e uma clara falta de subordinação à verdade dos fatos, sem a qual é impossível imaginar-se um mundo autenticamente democrático.
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Ademais, as humilhações, torturas e cerceamento extremado dos direitos – internacionalmente reconhecidos – dos prisioneiros mantidos nas prisões norte-americanas existentes no Afeganistão, no Iraque e em sua base cubana de Guantánamo demonstram até que ponto as forças militares norte-americanas e os atuais ocupantes da Casa Branca estão dispostos a levar a negação dos direitos de cidadania. Anunciam, de outra parte, que o severo cerceamento de liberdades, já imposto aos próprios norte-americanos e demais residentes em solo dos EUA, poderá ser alargado golpeando ainda mais fundamente direitos secularmente observados.
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Cumpre lembrar, por fim, já ter sido denunciado várias vezes o vínculo deletério, porque relacionado com a corrupção, existente entre detentores de altos cargos no governo norte-americano e conglomerados transnacionais cujas atividades distribuem-se por uma variada gama de atividades econômicas.
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Em suma, a união das teses de políticos ultraconservadores com os interesses da indústria de armamentos e os de conglomerados econômicos ligados aos ramos do petróleo e da indústria de "reconstrução" representa, juntamente com o processo maior de globalização, uma séria ameaça às liberdades, pois a persistência de tal aliança conduzirá os governos centrais, sob a égide dos EUA, a limitarem crescentemente, em nível mundial, os interesses da cidadania, o Estado de direito e o alcance das deliberações democraticamente concertadas.
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Caso este quadro venha a se verificar explicitar-se-ão os entraves do capitalismo com referência à democracia e aos direitos de cidadania; assim, a luta de resistência e reconquista de direitos por parte da esquerda terá de se ocupar de tais forças retrógradas de sorte a assegurar a efetivação das resoluções democraticamente alicerçadas e impedir o solapamento do Estado de direito. A luta pela democracia e pelos direitos de cidadania, elementos indispensáveis à constituição de uma eventual sociabilidade a ser instaurada futuramente, aponta, pois, para além das limitações próprias do modo de produção ora dominante.
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Evidentemente, com esta nossa constatação não pretendemos propor, aos que tomam o socialismo como algo desejável, um programa de atuação política balizado, tão-só, pela defesa da democracia e dos aludidos direitos. Abalançamo-nos, no entanto, a afirmar que, na elaboração da referida plataforma, deve ser emprestada importância máxima aos dois fatores aqui realçados.
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(1) Sobre esta questão permitimo-nos indicar aos interessados a leitura do artigo: COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, J. F. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.
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(2) Sobre tal "continuidade" veja-se: COSTA, Iraci del Nero da. "E agora, Você?". Informações FIPE [boletim eletrônico]. São Paulo, FIPE, n. 267, p. 25, 2002.
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