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SOBRE A MEDIUNIDADE: VISÃO DE UM IRRESPONSÁVEL
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Iraci del Nero da Costa (*)
São Paulo, junho de 2005
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Se me fosse exigida uma profissão de fé antropológica, constariam dela dois pontos básicos. Primeiramente, confessaria minha total ignorância quanto à matéria e me indiciaria como irresponsável por atrever-me a dela tratar. Num segundo passo, me diria adepto da idéia segundo a qual, a sociedades com o mesmo substrato socioeconômico, podem corresponder "superestruturas" as mais diversas. Vale dizer, àqueles substratos similares somar-se-iam elementos subjetivos, experiências e vivências coletivas, visões de mundo e perspectivas ideológicas peculiares a cada uma das comunidades; elementos esses condicionantes das diferenças observadas entre as aludidas superestruturas.
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Iraci del Nero da Costa (*)
São Paulo, junho de 2005
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Se me fosse exigida uma profissão de fé antropológica, constariam dela dois pontos básicos. Primeiramente, confessaria minha total ignorância quanto à matéria e me indiciaria como irresponsável por atrever-me a dela tratar. Num segundo passo, me diria adepto da idéia segundo a qual, a sociedades com o mesmo substrato socioeconômico, podem corresponder "superestruturas" as mais diversas. Vale dizer, àqueles substratos similares somar-se-iam elementos subjetivos, experiências e vivências coletivas, visões de mundo e perspectivas ideológicas peculiares a cada uma das comunidades; elementos esses condicionantes das diferenças observadas entre as aludidas superestruturas.
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Explicitados estes pressupostos, permito-me algumas considerações sobre uns poucos aspectos das concepções religiosas de distintas culturas.
Explicitados estes pressupostos, permito-me algumas considerações sobre uns poucos aspectos das concepções religiosas de distintas culturas.
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A meu ver, o advento da crença na existência de espíritos que se incorporam em determinadas pessoas (1) deve ter-se dado em comunidades nas quais não se havia desenvolvido uma hierarquização marcante entre seus integrantes. Assim, "ouvir" ditames exarados por "superiores" aos quais se deveria acatar sem maiores objeções só tornou-se viável mediante o artifício da referida incorporação. Estava-se, desta maneira, não em face das "opiniões" de um igual, mas perante o superior entendimento de uma entidade colocada acima dos "meros mortais" componentes de uma comunidade de "iguais". Tal fala transcende, pois, por definição, a visão parcial e discutível de um parceiro, transformando-se no conselho, e no limite numa ordem, ditados por um ente situado num escaninho que paira sobre todos e cada um dos integrantes da comunidade; ente este detentor da autoridade conferida pelo fato de ele se mover em uma esfera posta acima daquela na qual encontram-se os simples mortais.
A meu ver, o advento da crença na existência de espíritos que se incorporam em determinadas pessoas (1) deve ter-se dado em comunidades nas quais não se havia desenvolvido uma hierarquização marcante entre seus integrantes. Assim, "ouvir" ditames exarados por "superiores" aos quais se deveria acatar sem maiores objeções só tornou-se viável mediante o artifício da referida incorporação. Estava-se, desta maneira, não em face das "opiniões" de um igual, mas perante o superior entendimento de uma entidade colocada acima dos "meros mortais" componentes de uma comunidade de "iguais". Tal fala transcende, pois, por definição, a visão parcial e discutível de um parceiro, transformando-se no conselho, e no limite numa ordem, ditados por um ente situado num escaninho que paira sobre todos e cada um dos integrantes da comunidade; ente este detentor da autoridade conferida pelo fato de ele se mover em uma esfera posta acima daquela na qual encontram-se os simples mortais.
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Quanto às religiões afro-brasileiras é mister considerar que o processo de hierarquização dos sacerdotes e sacerdotisas deve-se à maior ou menor capacidade de comunicação dos médiuns com os espíritos, ou seja, a diferenciação hierárquica dos religiosos estrutura-se com base no grau relativo de "prestígio" de cada pai ou mãe-de-santo. Nesse sentido, pode-se afirmar que a hierarquização, frouxa aliás,(2) vê-se diretamente afetada pelo artifício da incorporação acima anotado. Já no que tange à hierarquização no seio de cada terreiro – ou seja, à que se estabelece no processo de formação religiosa e relacionamento entre os membros de cada grupo –, não parece restar dúvida de que a ascensão à condição de pai ou mãe-de-santo prende-se, imediatamente, ao conhecimento e domínio de práticas mágicas e à capacidade pessoal de comunicação com o plano espiritual.
Quanto às religiões afro-brasileiras é mister considerar que o processo de hierarquização dos sacerdotes e sacerdotisas deve-se à maior ou menor capacidade de comunicação dos médiuns com os espíritos, ou seja, a diferenciação hierárquica dos religiosos estrutura-se com base no grau relativo de "prestígio" de cada pai ou mãe-de-santo. Nesse sentido, pode-se afirmar que a hierarquização, frouxa aliás,(2) vê-se diretamente afetada pelo artifício da incorporação acima anotado. Já no que tange à hierarquização no seio de cada terreiro – ou seja, à que se estabelece no processo de formação religiosa e relacionamento entre os membros de cada grupo –, não parece restar dúvida de que a ascensão à condição de pai ou mãe-de-santo prende-se, imediatamente, ao conhecimento e domínio de práticas mágicas e à capacidade pessoal de comunicação com o plano espiritual.
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No caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo (3) a existência de profetas e mesmo a de um Messias pode ser assimilada à idéia das aludidas incorporações. Não obstante, no caso dessas religiões parece ter ocorrido um paulatino e continuado afastamento dos "espíritos", dos profetas e que tais para uma órbita própria e sem comunicação amiudada com os terráqueos. Destarte, definiu-se uma instância de santos e quejandos os quais apenas excepcionalmente mantêm contato com seus seguidores.
No caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo (3) a existência de profetas e mesmo a de um Messias pode ser assimilada à idéia das aludidas incorporações. Não obstante, no caso dessas religiões parece ter ocorrido um paulatino e continuado afastamento dos "espíritos", dos profetas e que tais para uma órbita própria e sem comunicação amiudada com os terráqueos. Destarte, definiu-se uma instância de santos e quejandos os quais apenas excepcionalmente mantêm contato com seus seguidores.
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Correlatamente, a interpretação dos livros santos, os "conselhos" e as "ordens" passaram a fixar-se institucionalmente, ou seja, a ser atribuição de sacerdotes hierarquicamente organizados. A este respeito, é interessante notar que mesmo a dissidência protestante manteve elementos da referida hierarquização; ademais, muitas das seitas derivadas do protestantismo que pretendem uma volta aos velhos tempos das intervenções milagrosas do poder divino não só antepuseram-se mais decididamente à rigidez hierárquica, mas, além de representarem uma regressão a práticas próprias da magia,(4) e talvez por isso mesmo, também reaproximaram-se de posturas as quais supõem um contato direto, quase imediato, com o mundo dos espíritos.
Correlatamente, a interpretação dos livros santos, os "conselhos" e as "ordens" passaram a fixar-se institucionalmente, ou seja, a ser atribuição de sacerdotes hierarquicamente organizados. A este respeito, é interessante notar que mesmo a dissidência protestante manteve elementos da referida hierarquização; ademais, muitas das seitas derivadas do protestantismo que pretendem uma volta aos velhos tempos das intervenções milagrosas do poder divino não só antepuseram-se mais decididamente à rigidez hierárquica, mas, além de representarem uma regressão a práticas próprias da magia,(4) e talvez por isso mesmo, também reaproximaram-se de posturas as quais supõem um contato direto, quase imediato, com o mundo dos espíritos.
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Assim, certas seitas ocupam-se da expulsão de espíritos malignos – associados ao Diabo – que teriam assumido o comando dos corpos de alguns candidatos a fiéis; estes últimos, por seu turno, são "revelados" pelos assim chamados pastores ou bispos, os quais detectam males e encaminham a cura de doenças físicas e males espirituais que afetam os membros de seus "rebanhos". Neste último caso a inspiração viria diretamente de Deus, o qual seria a fonte do poder daqueles sacerdotes, aos quais caberia, também, promover o bem-estar material e financeiro de seus dizimistas.
............................................NOTAS
(*) Agradeço os comentários e sugestões de Lívia Maria Pedalini.
(1) Não trato aqui do advento da crença numa forma de existência após a morte nem me ocupo dos espíritos em si, preocupa-me apenas, como expressamente afirmado, a emergência da crença na referida incorporação. Tenha-se presente, ademais, que o surgimento de tal fenômeno não decorreu, a meu ver, de um ato conscientemente planejado pelos "primeiros" médiuns; deve ter-se dado como um complexo comportamento psicológico, o qual, em face da rica experiência social dele decorrente, foi, paulatinamente, integrado à vida coletiva das mais diversas comunidades.
(2) As religiões afro-brasileiras, embora guardem um caráter "universal", marcam-se por um alto nível autárquico; destarte, cada grupo de seguidores reúne-se em torno de uma dada liderança. Tais grupos, ademais, concorrem entre si. Assim, a hierarquização ora referida diz respeito ao maior ou menor prestígio social (aqui entendido como grau de respeitabilidade religiosa) de cada pai e mãe-de-santo, não implicando, portanto, a institucionalização hierarquicamente organizada das aludidas lideranças, a qual, como sabido, não existe em termos formais. Note-se, ainda, que aludo à hierarquia existente "entre" distintos grupos, pois a prevalecente "dentro" de cada grupo (ou terreiro) será enfocada logo a seguir.
(3) Como sabido, para os muçulmanos Jesus Cristo é tido como um profeta.
(4) Decorrências imediatas desta regressão a práticas mágicas são dadas pela promoção de curas milagrosas e pelas promessas de ganhos financeiros e materiais em troca dos dízimos e do óbolo sempre presente em toda campanha promovida por grotescos negociantes de benesses divinas, figuras essas que se comportam como proprietários dessas "denominações de resultados".
Assim, certas seitas ocupam-se da expulsão de espíritos malignos – associados ao Diabo – que teriam assumido o comando dos corpos de alguns candidatos a fiéis; estes últimos, por seu turno, são "revelados" pelos assim chamados pastores ou bispos, os quais detectam males e encaminham a cura de doenças físicas e males espirituais que afetam os membros de seus "rebanhos". Neste último caso a inspiração viria diretamente de Deus, o qual seria a fonte do poder daqueles sacerdotes, aos quais caberia, também, promover o bem-estar material e financeiro de seus dizimistas.
............................................NOTAS
(*) Agradeço os comentários e sugestões de Lívia Maria Pedalini.
(1) Não trato aqui do advento da crença numa forma de existência após a morte nem me ocupo dos espíritos em si, preocupa-me apenas, como expressamente afirmado, a emergência da crença na referida incorporação. Tenha-se presente, ademais, que o surgimento de tal fenômeno não decorreu, a meu ver, de um ato conscientemente planejado pelos "primeiros" médiuns; deve ter-se dado como um complexo comportamento psicológico, o qual, em face da rica experiência social dele decorrente, foi, paulatinamente, integrado à vida coletiva das mais diversas comunidades.
(2) As religiões afro-brasileiras, embora guardem um caráter "universal", marcam-se por um alto nível autárquico; destarte, cada grupo de seguidores reúne-se em torno de uma dada liderança. Tais grupos, ademais, concorrem entre si. Assim, a hierarquização ora referida diz respeito ao maior ou menor prestígio social (aqui entendido como grau de respeitabilidade religiosa) de cada pai e mãe-de-santo, não implicando, portanto, a institucionalização hierarquicamente organizada das aludidas lideranças, a qual, como sabido, não existe em termos formais. Note-se, ainda, que aludo à hierarquia existente "entre" distintos grupos, pois a prevalecente "dentro" de cada grupo (ou terreiro) será enfocada logo a seguir.
(3) Como sabido, para os muçulmanos Jesus Cristo é tido como um profeta.
(4) Decorrências imediatas desta regressão a práticas mágicas são dadas pela promoção de curas milagrosas e pelas promessas de ganhos financeiros e materiais em troca dos dízimos e do óbolo sempre presente em toda campanha promovida por grotescos negociantes de benesses divinas, figuras essas que se comportam como proprietários dessas "denominações de resultados".
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