10.11.04

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NOTA SOBRE UMA BUSCA INGLÓRIA


Iraci del Nero da Costa
São Paulo, setembro de 2004

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A nosso ver, alguns pensadores marxistas ainda se prendem ferrenhamente à idéia de que uma eventual mudança socioeconômica radical dependerá, necessariamente, da liderança ideológica e da condução política de uma classe social revolucionária.
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Dadas as transformações ocorridas no seio do velho proletariado, alguns buscam um novo "sujeito revolucionário" no seio de segmentos mais bem preparados do ponto de vista intelectual e profissional; integrantes de tais segmentos, aptos a chegarem a um refinamento ideológico mais sofisticado, aglutinar-se-iam numa elite politicamente atuante a qual viria a comandar as esperadas mudanças radicais. Já outros, procuram esse "indivíduo universal" nos estratos menos abonados da sociedade, entre os que "não têm nada a perder, a não ser as correntes que os agrilhoam".
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De toda sorte, estejam onde estiverem, tais elementos terão de estar em algum lugar de nossa complexa sociedade de inícios do século XXI. Tudo se passa como se o momento tido como "objetivo" tivesse preeminência absoluta sobre o elemento considerado de ordem "subjetiva". A nosso juízo, a permanência de tal visão cediça, que já se mostrava limitada e ultrapassada no passado, é muito perniciosa e impede que se "limpe o terreno do pensamento marxista" a fim de que possamos formular novas formas de encarar a realidade atual e de atuar sobre ela; realidade essa fundamente marcada e alterada, tanto objetiva como subjetivamente, pela derrocada do assim chamado "socialismo real".
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Uma das mudanças significativas decorrentes da experiência histórica acumulada no correr dos últimos cento e cinqüenta anos talvez tenha sido a de liberar uma eventual revolução social futura das amarras que, como se supunha, a prendiam a uma dada classe social.
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Segundo pensamos, o papel ativo e historicamente significativo do proletariado culmina e se esgota com a formulação da crítica do capital efetuada por Marx. Pode-se dizer que a classe operária desempenhou papel fundamental para indicar à humanidade (aqui personalizada em Marx), de uma parte, a possibilidade de se subverter a sociedade burguesa, e, de outra, a de evidenciar a direção básica dessa mudança: a supressão da propriedade privada sobre os meios de produção.
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A contar da obra de Marx, a revolução deixa de ser uma tarefa desta ou daquela classe e se torna um programa de mudanças que se impõe a toda a humanidade. Tal alteração no caráter de uma eventual revolução futura não é aleatório, pois resulta tanto de causas de ordem objetiva como de razões de ordem subjetiva. Vejamos, inda que superficialmente, alguns desses condicionantes.
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A concepção de um descolamento da mudança revolucionária de corte socialista com respeito à classe operária, ou a uma dada classe social, parece-nos muito incipiente e está a demandar uma sistematização teórica de largo fôlego; embora saibamos que não estamos pessoalmente preparados para efetuá-la, sentimos que podemos intuir sua necessidade e cremos que elementos teóricos embrionários de tal descolamento já se encontram presentes no pensamento de Marx, Engels e Lukács. Assim, lê-se no Manifesto Comunista: "Todas as classes dominantes anteriores procuraram garantir sua posição submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários só podem se apoderar das forças produtivas sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles têm que destruir todas as seguranças e todas as garantias da propriedade privada até aqui existentes" (MARX & ENGELS, 1998, p. 18-19).
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Coube a Georg Lukács lançar luz sobre essa observação de Marx e Engels, destarte, em Historia y consciencia de clase, encontramos, calcada na citação acima posta, uma longa explanação sobre as tarefas de novo tipo que se imporiam ao proletariado: "Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revoluciones victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de su consciencia de clase respecto de la estructura económica objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su propia función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó siempre oculto, entregado a la 'astucia de la razón' en el proceso social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en la historia con la tarea de una transformación consciente de la sociedad, tiene que producirse en su consciencia de clase la contradicción dialéctica entre el interés inmediato y la meta última, entre el momento singular y el todo. Pues el momento singular del proceso, la situación concreta con sus concretas exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad, a la sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más que se inserta en la concepción total del proceso, cuando se introduce con referencia al objetivo último, remitiendo concreta y conscientemente más allá de la sociedad capitalista. Pero eso significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de clase del proletariado, que la relación dialéctica entre él interés inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores, más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues, como para las demás clases anteriores, la realización inmediata del ser socialmente dado de la clase, sino – como ya lo vio y formuló agudamente el joven Marx – la autosuperación de la clase. El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente modo: 'Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado en la vida sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo modo de apropiación existido hasta ahora.'" (LUKÁCS, 1975, p. 77-78).
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Como se vê imediatamente, o cerne da questão repousa no caráter totalmente original das transformações a serem implementadas. Não se trata mais da subordinação de uma ou mais classes sociais aos interesses imediatos de um segmento social dominante, mas da própria superação das classes sociais; não se trata de impor uma nova forma de expropriação, mas de eliminar a possibilidade de que a exploração possa ocorrer. Este elemento de ordem objetiva empresta um conteúdo novo à própria idéia de revolução, tornando-a uma tarefa aberta à participação de todas as classes e segmentos sociais, enfim de toda a parcela da Humanidade favorável à emergência de uma sociedade mais equânime, ademais, confere um novo status ao momento subjetivo.
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Encontramo-nos, de fato, em face de uma situação limite na qual o elemento de ordem objetiva deixa de ter um caráter transformador per se e o elemento subjetivo assume papel determinante, pois o passo transformador definitivo depende agora, necessariamente, da ação consciente dos homens.
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Para nós, como apontado em trabalhos anteriores realizados juntamente com José Flávio Motta, o desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital conhece seu ponto culminante com a emergência da mercadoria força de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do capitalismo, no âmbito do qual se dá o pleno amadurecimento de tais formas. Estabelecido em espaço geográfico considerável passou ele a operar de maneira a subordinar e recriar, à sua feição, todo o espaço social, econômico e físico com o qual entrava em contato. Observa-se, assim, não só a emergência da história universal, mas, também, de uma mudança qualitativa na própria história da humanidade; a partir de então só persiste o modo de produção capitalista – que a tudo ilumina, como se diria em termos clássicos – tudo subordinando, condicionando e determinando.
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De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento superior daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade natural da humanidade; a partir de então – e à medida que o capital industrial traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua reposição – apenas um movimento do espírito, da ação conscientemente, poderá conduzir à superação das condições dadas, vale dizer, do capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente. O primeiro passo necessário à sua superação estará, pois, no estabelecimento da crítica teórica das condições dadas, estudo este que deverá fundamentar a ação consciente no sentido da negação do status quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do capital industrial e do capitalismo define-se como pressuposto imprescindível à aludida superação.
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A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e a publicação de O Capital representaram o primeiro momento do referido movimento do espírito indispensável à criação das condições subjetivas para que a humanidade pudesse propor-se a negação do capitalismo e, portanto, passar a empenhar-se nessa tarefa.
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Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista. Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e a universalização do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a crítica do sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e a formulação, ainda que num mero bosquejo, de uma nova forma de sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente no espírito e que, portanto, terá de ser por ele sustentada (isto é, terá como suporte a ação consciente de homens livremente associados).
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Como afirmado, a história natural do homem esgotou-se, chegou à sua forma superior com a existência do modo de produção capitalista; impõe-se, agora, sua história "cultural", uma história propriamente humana uma vez que posta pelo "espírito" e não uma simples decorrência da acomodação do homem à situação objetiva que, embora sendo fruto de sua ação, lhe aparece como algo dado, como uma criação que lhe é exterior; não como um fato social, mas como um fato natural.
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Já não basta aos homens perseguirem seus interesses imediatos para dar-se a transformação revolucionária, é preciso que eles transcendam seus eventuais interesses "egoísticos", para usar uma linguagem própria de Antonio Gramsci; o "político" sobrepõe-se ao "econômico", o "subjetivo" sobrepuja o "objetivo". Quais elementos deveriam, afinal, estar presentes no bosquejo acima referido? Sem pretendermos sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos furtamos a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de encaminhar a discussão. Em primeiro lugar, considerando que terá de haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade, é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo, tal sociedade terá de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição consoante as necessidades dos indivíduos. Em terceiro, para a gestão da vida econômica dessa sociedade “pós-capitalista” precisar-se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a conhecemos, nem com a economia como a praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão a produção física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de caráter individual e social.
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Em suma, temos, no capitalismo, um sistema "natural" integrado, auto-regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-se "naturalmente" delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o embrionário pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro coerente e articulado do que deverá vir a ser, em idéia, o sistema pelo qual almejam os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que nos parecerá muito mais rudimentar se tivermos presente o quanto lhe resta por avançar, pois, por se tratar de algo "antinatural", tudo, ou quase tudo, ainda está por ser elaborado. Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato de que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabelecimento e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade humana (as questões aqui sumariadas, como avançado, são tratadas mais detidamente nos seguintes trabalhos: MOTTA & COSTA, 2000 e MOTTA & COSTA, 2004).
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Talvez seja oportuno lembrar a esta altura desta nota que o empuxo transformador de caráter objetivo devido à ação da classe operária e do campesinato é bastante para colocar o capitalismo em xeque, mas, na ausência do elemento subjetivo aqui referido, o movimento revolucionário passa a "patinar" e sua direção pode ser empolgada por grupos políticos que conduzem o corpo social a situações em que domina o elemento repressivo ou totalitário e nas quais podem vir a predominar aparelhos burocráticos corruptos e/ou em que a ineficiência se mostra generalizada. Exemplos de casos como tais encontramos na URSS, nos países do leste Europeu, na China e em nossa tão desventurada Cuba.
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Se as opiniões acima reportadas estiverem corretas é forçoso reconhecer que a tarefa colocada ao pensamento de esquerda não é a de encontrar uma "nova classe redentora", mas a de mobilizar consciências para a execução de um projeto político-ideológico consistente e abrangente, projeto este que nos cabe formular, pois ele ainda nem sequer foi esboçado em todas as suas dimensões.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Editorial Grijalbo, 1975. (Instrumentos, 1).
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MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. In: Daniel Aarão Reis Filho (organizador). O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto/São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, 208 p.
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MOTTA, José Flávio &. COSTA, Iraci del Nero da. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.
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MOTTA, José Flávio &. COSTA, Iraci del Nero da. A mercadoria força de trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, número 14, jun. 2004, p. 32-47.
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4.10.04

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PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL: NOTAS DE UM AMADOR SOBRE O ESTADO DA ARTE


Iraci del Nero da Costa
São Paulo, 3 de outubro de 2004




Alguns analistas políticos, por mim considerados açodados, estão a anunciar o domínio do cenário político brasileiro pelos dois partidos que teriam consolidado sua hegemonia nas eleições municipais ora em curso: o PT e o PSDB.

Embora seja possível identificar um efetivo processo de canibalização de muitos partidos, inclusive dos mastodônticos PFL e PMDB, pelo PSDB e, sobretudo, pelo PT, afirmar como definitiva a bipartidarização da vida política brasileira parece corresponder a uma opinião sem respaldo mais sólido em nossa realidade político-partidária, daí seu caráter impressionista e precipitado.

Tal caráter deriva, a meu juízo, de três condicionantes básicos.

Em primeiro, comparece o desejo de petistas e peessedebistas de comandarem a vida política nacional. Trata-se de nossa nova direita, a qual almeja sobrepor-se à velha direita encarnada nos herdeiros da Arena (PFL e PP), ao grande partido populista de centro em que se transformou uma parte do MDB sob a forma do PMDB, e que visa, igualmente, levar os eleitores a esquecerem tanto as promessas social-democratas do antigo PSDB comandado por intelectuais então tidos como ideólogos sofisticados e políticos refinados, assim como as já definitivamente enterradas esperanças de mudanças de fundo propaladas por um PT de líderes operários autênticos e imaculados. A esta nossa nova direita interessa, como avançado, um eleitorado mais ou menos apático, perdido entre duas siglas anódinas dirigidas por homens aos quais basta a esqualidez e impessoalidade do governador de São Paulo, os discursos chorosos de um presidente inteiramente dessangrado, ou que se assustam com a veemência das falas de um vice-presidente que ainda traz impressas, no sotaque e na sinceridade bonachona, as marcas de nosso tão tradicional, querido e bom caipira.

De outra parte, temos a ação continuísta do atual governo federal. Ao endossar a política econômica implantada pelo governo FHC, o presidente Luiz Inácio da Silva deu nova vida ao PSDB, às suas proposições e a suas lideranças, as quais haviam saído fundamente debilitadas das eleições presidenciais. Destarte, a nefasta falta de originalidade e de audácia do PT atuou no sentido de revigorar as teses e práticas propugnadas pelo PSDB emprestando, assim, ânimo redobrado aos quadros e tradicionais eleitores peessedebistas. A isso se soma, também, o apoio ao PSDB de uma parte do corpo eleitoral desencantado com as atitudes conformistas do PT.

Por fim, e de certa maneira vinculada ao tópico acima apontado, temos como que uma antecipação da polarização esperada para 2006 com respeito às eleições presidenciais. Teríamos, assim, de um lado, o PT e seus aliados mais firmes a lutarem pela reeleição de Luiz Inácio da Silva, e, de outro, sob a liderança de FHC, uma candidatura do PSDB e seus aliados, candidatura essa ora disputada pelo próprio FHC e pelos governadores de São Paulo e de Minas Gerais.

Quanto ao PT há ainda a lembrar que se desenha seu avanço nas cidades pequenas e médias, localizadas no interior, evento esse tradicionalmente observado com respeito ao partido detentor do poder central; de outra banda, segundo se anuncia, o PT sofrerá algumas importantes perdas eleitorais, ou deixará de somar ganhos, em várias cidades de grande porte. Tais perdas favorecerão, sobretudo, o PSDB; ademais, podem elas ser atribuídas, basicamente, à política econômica adotada pelo governo federal e ao descaso do presidente da República e da cúpula dirigente do PT quanto à efetivação das promessas e compromissos assumidos pelo partido no correr de sua história.

Enfim, por mais expressivo que se queira o quadro delineado neste período entre os dois turnos das eleições municipais, deve ele ser entendido, em face dos raciocínios acima expendidos, como episódico.

Há uma tendência no sentido de uma depuração quanto ao número excessivo de partidos hoje existentes? Sim, não há dúvida quanto a isto. É possível dar-se no Brasil um processo do qual resulte uma bipartidarização? Sim, embora não nos pareça provável que tal decantação venha a definir-se em curto espaço de tempo. Tais questões não estão em jogo, os argumentos aqui argüidos dizem respeito, tão-só, a dois pontos bem específicos: de uma parte, não parece correto afirmar que esteja a ocorrer uma bipolarização cujo caráter possa ser tido como definitivo e acabado; de outra, não se pode garantir a hegemonia tácita do PT e do PSDB, nem a irremediável depauperação do PFL e do PMDB, sendo de notar, ademais, consideradas as eleições municipais ainda em curso, o avanço do PSB e a manutenção da expressividade, entre outros, de partidos como o PDT, o PP e o PTB.
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16.9.04

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O PT E O ARDIL DA DESRAZÃO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, setembro de 2004
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Ao dar continuidade à política econômica do governo anterior e ao adotar os mesmos comportamentos oportunistas e fisiológicos finamente burilados e aperfeiçoados pelo PSDB e pelo ex-presidente FHC, o PT e o atual presidente da República formularam uma interessante equação político-ideológica que se coloca, como um avantesma, a alguns honestos e sinceros homens de esquerda. Vejamo-la.
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Ao esposar as aludidas política econômica e práticas indecentes, o PT emprestou novas forças ao derrotado PSDB e revigorou a sempre presente candidatura de FHC à presidência da República. Ora, reza a equação, uma vitória do PSDB em 2006 poderá acarretar um forte e rápido avanço do país pela trilha neoliberal, elevando-se, assim, o risco de se ver privatizado o pouco que resta do patrimônio nacional (CEF, BB e Petrobras, por exemplo). Destarte, é preciso apoiar o PT e a reeleição de Luiz Inácio da Silva a fim de evitar o mal maior.
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Em suma, é necessário aceitar a política econômica e os métodos desenvolvidos pelo PSDB, ora aplicados pelo PT, para impedir que tal política e tais procedimentos venham a ser retomados em grau ainda maior por um futuro governo do PSDB. Ou, em outros termos, deve-se prestigiar o atual "PSDB", que está no poder transvestido de PT, para impossibilitar a retomada do poder pelo autêntico PSDB; ou ainda: só nos resta tornarmo-nos peessedebistas para combatermos eficientemente o peessedebismo! Estejam onde estiverem, Stalin e Mao Tsé-Tung devem sorrir de inveja de um engodo tamanhamente colossal.
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Enfim, e aqui a opção trágica posta pela anunciada equação mostra-se em sua inteireza: é forçoso renunciarmos às tão esperadas e desejadas mudanças, impõe-se o abandono definitivo das tradicionais propostas da esquerda.
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Para as vítimas da armadilha embutida na formulação em análise, a única maneira de continuar sendo de esquerda está em aderir ao projeto neoliberal desenhado e implementado por FHC e pelo PSDB. Vale dizer, para provarmos que somos bons adeptos do pensamento de esquerda devemos nos transformar em pessoas de direita!
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A falácia presente neste reles "ardil da desrazão" é evidente. O risco não está na "volta" do PSDB, mas na continuidade de sua política de capitulação ao grande capital financeiro, no abandono das muito esperadas políticas capazes de mudar o perfil brutal de uma sociedade despudoradamente desumana e na aceitação de um programa de corte neoliberal no qual a preocupação com os despossuídos reflete-se, tão-só, numa coleção caótica e inoperante de meras intenções assistencialistas. O resto, como diria Marx, é saliva, conversa mole na qual se especializou o atual presidente da República, que fica a remoer uma lengalenga sentimentalóide incoerente e inconsistente.
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Em face de tal quadro é necessário afirmar com todas as letras que o pensamento político de esquerda autêntico e legítimo requer uma clara e decidida condenação do governo petista, de seus programas e de seus métodos.
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Mas, dirão alguns, tal postura levar-nos-á ao isolamento e restringir-nos-emos a um minúsculo grupo desorganizado, sem estrutura partidária e sem uma troca contínua e sistemática de informações e idéias. Sim, tudo isso é verdadeiro e corresponde à realidade com a qual nos defrontamos. Mas esta é a parte que nos toca e dela se infere a dimensão efetiva das tarefas a executar. A alternativa está em renegar nossas idéias e aspirações, está no esquecimento de um sonho, em larga medida utópico, de há muito concebido e calcado na dimensão humana que reside numa espécie predatória largamente dominada por interesses mesquinhos, mas igualmente integrada por espíritos generosos capazes de pensar projetos aparentemente irrealizáveis e de enfrentar desafios tidos, à primeira vista, como intransponíveis.
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15.9.04

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UMA DERROTA SALUTAR, PORÉM INÚTIL
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, setembro de 2004
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A atual prefeita de São Paulo, embora esteja a desenvolver uma administração bem aceita pelos munícipes sem maiores posses e de baixa renda, provavelmente não se reelegerá, pois as camadas médias, crescentemente, têm-se afastado da candidata do PT.
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Dois componentes principais aliam-se para determinar tal insucesso, o qual representará expressiva perda política para Luiz Inácio da Silva e seu partido.
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Por um lado, comparecem a desastrosa política econômica adotada pelo governo Federal e as atitudes oportunistas e fisiológicas assumidas pelo presidente da República e as lideranças petistas, por outro, contabiliza-se o forte desgaste político da prefeita paulistana com respeito à classe média e aos assim chamados formadores de opinião.
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Esta incompatibilidade deve-se à arrogância pueril da prefeita e à adoção de duas novas taxas, cujo impacto econômico é absolutamente desprezível, mas que contaram com a decidida repulsa das camadas médias.
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Tentando remediar as provocações gratuitas dirigidas aos mais abonados, a prefeita deu início a obras as quais, imaginou, seriam vistas com simpatia pelos que a criticavam. Não obstante, observada a ótica política, as providências implementadas pela Prefeitura representaram mais um fracasso, pois a existência de várias obras tocadas ao mesmo tempo contribuiu para atravancar ainda mais o já caótico trânsito da cidade e com referência ao qual as aludidas camadas sempre se mostraram muito susceptíveis.
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A desenfreada corrida para entregar as obras antes do prazo previsto evidencia as dimensões do estrago eleitoral devido às ações atabalhoadas patrocinadas por uma prefeita atarantada.
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Enfim, arrogância, taxas sem peso econômico, mas altamente antipáticas e certamente inconstitucionais, somaram-se a uma tentativa mal costurada de cortejar a porção economicamente mais bem aquinhoada do eleitorado. Disso tudo, resultou o aumento da taxa de rejeição da candidata petista e uma significativa alta na porcentagem das intenções de voto concernentes ao candidato José Serra (PSDB), o qual também se tem beneficiado da "antecipação" da migração de votos, antes direcionados a Paulo Maluf (PP) e a Luiza Erundina (PSB); ou seja, como afirmam os cronistas políticos, o segundo turno já começou.
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Ainda no que tange à causa maior da esperada derrota do PT em São Paulo – qual seja, a perda de apoio de importante parcela das camadas médias – deve-se lembrar que tal parcela se compõe de dois segmentos bem distintos. Num primeiro grupo, menos numeroso, estão os elementos mais politizados, os quais se mostram grandemente ressentidos com o governo federal e com as posturas que passaram a caracterizar a cúpula dirigente do PT e a marcar indelevelmente a figura do presidente da República depois da vitória que o conduziu ao governo federal. Para esse conjunto, politicamente mais sofisticado, as eleições municipais não podem ser avaliadas em termos meramente administrativos, mas devem ser vistas segundo uma perspectiva eminentemente política, pois se apresentam como a oportunidade para ser explicitado o repúdio com relação à capitulação do governo federal aos ditames do FMI e aos interesses do sistema financeiro nacional e estrangeiro. No segundo subconjunto, bem mais fornido de eleitores do que o primeiro, encontram-se os integrantes da classe média simplesmente descontentes com a prefeita paulistana: com sua prepotência, com a criação de taxas e com os desencontros observados na condução das obras viárias empreendidas afoitamente pela municipalidade.
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De toda sorte, a muito provável vitória de José Serra não será, do ponto de vista político, de grande valia para o PT, nem servirá para reconduzir o partido ao leito abandonado de há muito, pois, enquanto a candidata derrotada se verá tentada a atribuí-la à política econômica do governo federal, os membros deste último tenderão a afirmar que a catástrofe eleitoral na cidade de São Paulo deveu-se à inabilidade político-administrativa da atual prefeita.
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Já os desarranjos a serem observados nos planos petistas quanto às eleições de 2006 serão de somenos, pois todos os interessados – Marta Suplicy, Aloizio Mercadante, José Dirceu e Luiz Inácio da Silva – são farinha do mesmo saco. Luiz Inácio continuará tranqüilamente à frente da campanha já em desenvolvimento por sua reeleição, Mercadante e Marta lutarão pela candidatura ao governo do Estado, José Dirceu talvez seja tentado pelas eleições presidenciais de 2010.
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Assim, o fato de Marta Suplicy não chegar a um segundo mandato será bem-vindo, pois demonstra um corpo eleitoral capaz de reagir a afrontas, mas, infelizmente, será de pouca utilidade, pois não terá o condão de alterar a política econômica e as práticas condenáveis abraçadas pelo presidente da República e pela cúpula petista.
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Quanto ao campo do PSDB talvez se dê a acomodação de José Serra, o qual poderá rever sua pretensão de candidatar-se à Presidência da República em 2006, cadeira essa ora disputada pelos três pré-candidatos cujas campanhas já foram lançadas: o governador de Minas Gerais, o apoucado titular nominal do governo paulista e o indefectível ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
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É este o insosso deserto que se abre à nossa frente. Devemo-lo, em grande medida, ao estelionato eleitoral perpetrado pelo PT e por Luiz Inácio da Silva nas últimas eleições presidenciais.
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13.8.04



"PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FLORES"


Iraci del Nero da Costa
São Paulo, agosto de 2004




Há fatos em face dos quais não podemos nos calar; por sua gravidade, exigem eles que explicitemos nossa indignação. Embora reconheça haver-me omitido com respeito a muitos deles, impus-me, com referência à tentativa governamental ora em curso de cercear a liberdade de imprensa, a obrigação de, mesmo sem apresentar argumentos originais, consignar a repulsa que ações desse jaez devem inspirar no espírito das pessoas que se consideram respeitadoras da vivência democrática.

A maneira como foi engendrada a proposta de estabelecimento de um Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), o modo como o Governo Federal incorporou e encaminhou o projeto de lei que o cria, o momento escolhido para apresentá-lo ao Congresso e à Nação, assim como os objetivos precípuos a que se destina este malfadado conselho, denotam um claro comportamento de feitio fascista e evidenciam o grau de degenerescência ideológica a que chegaram o atual presidente da República, seu Governo e a elite dirigente do Partido dos Trabalhadores. Se não, vejamos.

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), à qual se deve a iniciativa de sugerir a instituição do CFJ, parece interessada, sobretudo, em patrulhar o acesso à atividade profissional. Assumem seus integrantes, pois, uma atitude de caráter estritamente corporativo. Como realçado por vários articulistas, as atividades desempenhadas por jornalistas não se confundem com as desenvolvidas por médicos, engenheiros, advogados e outros profissionais de cujos erros ou omissões podem redundar danos definitivos e irreparáveis; tal fato, per se, torna dispensável o controle profissional dos jornalistas, pois ele pode ser exercido, em sua plenitude, mediante o apelo, por parte de eventuais interessados, à legislação e às instituições judiciais já existentes.

Quanto à remessa ao Congresso da proposta de criação do novo conselho, viu-se ela acompanhada de infelizes declarações efetuadas por membros do governo. Nelas, tais autoridades enfatizaram os aspectos mais antipáticos do órgão a ser institucionalizado: o controle das atividades e atitudes dos jornalistas e o mal velado dirigismo. Vale dizer, ao órgão cumpriria "orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo", cabendo-lhe, ademais, impor penas a eventuais transgressores, penas essas que poderiam chegar à suspensão e à própria cassação do registro profissional.

Já o momento para o aludido envio revelou-se dos mais inoportunos, pois vivemos em meio a um sem-número de denúncias levantadas por jornalistas contra altos dirigentes governamentais. Assim, ao atender – prontamente, segundo alega – às solicitações da Fenaj, o Governo Federal fez-nos crer estar em busca de mera retaliação contra os que são tomados por muitos dos governistas como um grupo mal-intencionado de reles detratores.

Tenha-se presente, no tocante ao comportamento do Governo Federal, que o projeto de lei formulado pelo Ministério da Cultura e com o qual se visa à criação de uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) padece do mesmo viés autoritário ora denunciado; segundo seus elaboradores é de grande importância o estabelecimento de "meios de controle e fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais".

Em face desse quadro não resta dúvida, pretende-se golpear a democracia e impor o silêncio. Do governo que aí está nada se pode esperar, suas ações já deixaram patente seu alheamento. Dos jornalistas, da intelectualidade, dos cidadãos em geral, destes sim, espera-se o repúdio à volta da censura, da coerção e de um inaceitável dirigismo.

2.6.04



SENHOR DEUS DOS DESGRAÇADOS...


Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2004



"Quando vi na TV as imagens de uma idosa
palestina de joelhos em busca de seus
medicamentos, remexendo nos escombros de
sua casa [destruída pelos soldados israelenses],
eu me lembrei de minha avó, que foi morta
pelos nazistas durante o Holocausto."
(Yosef Lapid, ministro da Justiça de Israel,
Folha de S.Paulo, caderno Folha Mundo,
p. A 8, 24/05/2004).



Embora o ministro Lapid tenha afirmado explicitamente que não compara Israel aos nazistas, tomo a liberdade de dizer que suas declarações – as quais, por sua honestidade e desprendimento, enobrecem e dignificam os judeus e o Estado de Israel – compelem-me a externar uma impressão a qual guardo comigo há já algum tempo; segundo penso, uma parcela significativa de sionistas mostra-se disposta a aceitar a adoção, por parte de militares e políticos israelenses, de práticas nazistas iguais às que vitimaram milhões de judeus. Embora não seja seu formulador, mesmo porque ela o precede, tal perspectiva tem no primeiro-ministro Ariel Sharon, a meu ver, um de seus mais conspícuos adeptos.

Antes de avançar nestas considerações cumpre-me consignar que o sofrimento infligido por séculos aos judeus atuou sobre mim de sorte a levar-me a não expressar até o momento as opiniões aqui enunciadas; no entanto, em respeito a essa minha profunda reverência àquela perseguição ignóbil, vejo-me obrigado a pronunciar-me, como mero ser humano, contra a política criminosa implementada, sistemática e metodicamente, pelo aludido primeiro-ministro, política esta que assumiu em Rafah, na faixa de Gaza, um caráter absolutamente inaceitável. Como bem asseverou o ministro Lapid, a ação ali desenvolvida pelo Exército de Israel "não é moral, humana nem conforme à ética judaica" (idem, ibidem).

As proposições e a política defendidas por Ariel Sharon, bem como a atuação do exército por ele encabeçado, correspondem a uma forma de fundamentalismo sionista (1) – de há muito existente – colocada à margem da história e frontalmente contrária ao pensamento humanista que, de maneira lenta, embora conseqüente, tem feito avançar positivamente o relacionamento entre os homens, as nações e os povos. Como todos seus homólogos – entre os quais, diga-se desde logo, coloca-se o terrorismo praticado por fundamentalistas islâmicos (2) –, tal forma bárbara de sionismo deve ser repudiada por todos os que, independentemente de qualquer qualificação, almejamos a convivência fraterna e solidária entre todos os seres humanos.

De outra parte, se a hipótese aqui aventada estiver correta, impõe-se a verificação de estarmos em face de duas formas de fundamentalismo – o sionista e o islâmico – absolutamente antagônicos, os quais, portanto, não chegarão, espontaneamente, ao entendimento capaz de assegurar a coexistência pacífica de duas nações livres e soberanas: o Estado de Israel e o Estado Palestino. (3) Assim sendo, por mais remota que possa parecer a possibilidade de se alcançar uma tal solução, é preciso reconhecer a necessidade da presença, na região, de uma força militar internacional a qual, interpondo-se entre os litigantes, venha a garantir as condições de não-beligerância indispensáveis à emergência de um clima de paz do qual resulte, num futuro que ainda não se pode divisar, o estabelecimento de um acordo de paz equânime e definitivo entre israelenses e palestinos.

Um fato dramático associado a esta proposta está em que uma grande parte dos analistas, entre os quais posta-se a parcela majoritária dos que a vêem como a "única solução inteiramente eficiente para o problema israelo-palestino", concorda com a conclusão de ser praticamente impossível a sua efetivação. Israel não aceitaria a presença de forças estrangeiras em sua área de influência, os EUA não endossariam nem promoveriam essa intervenção e a ONU, mesmo se pudesse dispensar o veto dos EUA, não teria força bastante para impor tal ingerência na região. Vale dizer, a solução não o é, porque dificilmente será adotada.

As evidências apontam, pois, na direção da continuidade da situação atual: um estado de guerra sem fim, com um enorme número de vítimas inocentes e em que todos são perdedores. Isto tudo, por via de regra, executado em nome de um mesmo Deus, muito propriamente visto pelo poeta e por cidadãos comuns como o Senhor Deus dos desgraçados.


NOTAS
(1) Os adeptos do assim chamado fundamentalismo sionista distinguem-se pela aceitação integral dos seguintes preceitos: a) convicção de integrarem um grupo que, por escolha divina, define-se como "eleito" e, como tal, superior aos demais segmentos religiosos e/ou povos e/ou nações componentes da humanidade; b) convicção de que o Estado de Israel tem direito incondicional aos territórios reivindicados por israelenses; tal direito justifica a ocupação dessas terras independentemente do assentimento de seus ocupantes efetivos, os quais, não só estão obrigados a cedê-las, mas, em caso de resistência, podem ser expulsos mediante o emprego da violência armada de caráter civil ou militar; c) não acatamento de resoluções da ONU que sejam entendidas como contrárias aos interesses israelenses; o mesmo valendo com respeito a recomendações efetuadas por qualquer nação ou grupo de nações; d) em resposta às ações de força dirigidas contra o Estado de Israel, israelenses ou judeus é lícito o emprego de toda e qualquer forma de retaliação, mesmo se dela resultar a perda de bens materiais ou da vida de pessoas não comprometidas direta ou indiretamente com as aludidas ações.
(2) No respeitante aos israelenses, os fundamentalistas islâmicos – para os quais o Estado de Israel é inaceitável e tem de ser destruído – tomam como lícita toda e qualquer ação capaz de causar dano a Israel ou acarretar ofensa física ou a morte de israelenses ou de judeus; isto independentemente de qualquer tipo de qualificação ou consideração.
(3) Por ora, os grupos favoráveis à conciliação e à paz, encontráveis tanto entre os Palestinos como em Israel, infelizmente não detêm força política bastante para tornar efetiva a adoção de suas propostas e soluções.

22.5.04


LUIZ INÁCIO, O PEQUENO

Iraci del Nero da Costa
São Paulo, maio de 2004



Impõe-se o reconhecimento de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os integrantes dos escalões superiores de seu governo, assim como as lideranças e a alta cúpula dirigente do Partido dos Trabalhadores assumiram definitivamente uma postura antinacional e estritamente subordinada aos interesses do capital financeiro e especulativo. Correlatamente, foram esquecidas as mudanças sociais e econômicas com as quais o PT comprometera-se desde sua fundação.

Ao que tudo indica, o PT – sem a menor pressão de seus oponentes reais, mas talvez levado pela construção elaborada pela própria direção do partido de um poderoso adversário imaginário – trocou suas bandeiras históricas pela mera permanência no poder, o qual é exercido passivamente sob o lema da busca de quiméricos equilíbrios na órbita econômico-financeira e no âmbito fiscal. Destarte, o atual governo define-se, como fartamente documentado pelos críticos das mais variadas cores, como um executor simplório da política econômica de feitio neoliberal implementada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

A meu ver, defrontamo-nos com dois processos paralelos e inter-relacionados. Por um lado, testemunhamos a degeneração de um partido que, ao empolgar o poder político máximo do país, deixou de lado seu passado e se colocou como objetivo precípuo simplesmente manter-se no comando, gozando das benesses de tal posição sem tomar medidas para efetivar as propostas formuladas no correr de sua existência. Por outro, observamos a explicitação das carências de um presidente saído das fileiras sindicais e sobre o qual quase toda a nação fez repousar seu anseio por uma vida mais digna, justa e igualitária.

Com respeito ao presidente, resta evidenciado que Luiz Inácio Lula da Silva é apenas uma ficção, uma entidade tida por muito tempo como mítica, mas que se provou, tão-somente, uma grosseira mistificação.

Na verdade, o político Luiz Inácio da Silva, do qual hoje conhecemos as limitações e o despreparo, não conseguiu incorporar as qualidades do dirigente operário Lula: firmeza, clareza de propósitos e conseqüência. Infelizmente para nós, seus eleitores, Lula é visto por Luiz Inácio como um bravateiro irresponsável já desaparecido e devidamente esquecido; até nisso este infeliz presidente espelhou-se em seu predecessor.

De outra parte, este drama pessoal vivido pelo presidente da República tem, sobre a vida nacional, duas projeções da maior relevância. A primeira, de caráter social, exprime-se tragicamente no desemprego de milhões de pessoas. A segunda, de fundo político, e igualmente danosa, se expressa na recuperação da figura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, cuja ação irresponsável à frente de dois mandatos vê-se justificada pela atuação desvairada do governo atual. Neste sentido, pode-se ver em Luiz Inácio da Silva o grande eleitor da candidatura, já em andamento, de FHC, cuja insofreável volúpia pelo poder é universalmente reconhecida.

Quanto a nós, simples eleitores, consolamo-nos com a certeza pouco reconfortante de havermos sonhado o bom sonho e de termos escolhido, acertadamente, o frágil candidato Luiz Inácio, imaginando que estávamos a eleger o líder metalúrgico Lula.


1.5.04



NO REMOINHO DO PODER*

Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2004



Para muitos de nós, o comportamento dos norte-americanos denuncia uma atitude de superioridade e arrogância decorrente da prepotência característica do dominador assentado numa base material e técnica colocada acima da prevalecente no resto do planeta. Segundo tal modo de ver, os norte-americanos também superestimariam seus valores éticos e políticos, tomando-os como situados em um patamar ainda não alcançado por nenhuma outra nação. Enfim, a soberba e a prepotência seriam típicas desse povo por muitos de nós considerado politicamente não sofisticado e culturalmente pouco refinado.

A meu ver, a visão aqui reportada padece do simplismo atribuído aos norte-americanos. Afora o assim chamado "americano médio", o qual poderia ser envolvido por sentimentos de superioridade injustificáveis, por via de regra lastreados em informações parciais ou distorcidas, existe nos EUA uma elite cultural e política que não se deixa levar por argumentos falaciosos e ligeiros.

É preciso, pois, aprofundar a consideração desse "sentimento de superioridade" a fim de se identificar seus determinantes efetivos, os quais se enraízam na cultura americana não sendo, portanto, meros elementos superficiais de uma postura simplesmente preconceituosa, da qual é acusado o aludido americano mediano.

A meu juízo, antes de se dever a um pretenso "complexo de superioridade", a atitude em foco reflete uma preocupação extremada dos norte-americanos com os compromissos que historicamente sua nação assumiu com os ideais democráticos, com as garantias individuais dos cidadãos e com a defesa e preservação das liberdades de pensamento, organização, expressão e iniciativa. Lembre-se, aqui, que tal comprometimento viu-se fortalecido pela luta dos EUA contra o nazi-fascismo e a posterior disputa com a URSS. Impõe-se aos norte-americanos, pois, patentearem, básica e essencialmente no plano das idéias, sua devoção e respeito a suas sãs tradições. (1) Assim, em vez de exprimir um antipático "complexo de superioridade", a soberba da qual são tachados pode denotar a tentativa de fuga de um inescapável sentimento de inferioridade que os tomaria caso fossem obrigados a reconhecerem sua infidelidade às referidas tradições. Admitir tal inconfidência não só significaria rebaixarem-se ante si mesmos, mas, também, desmoralizarem-se definitivamente perante todos seus interlocutores internacionais. Assim, ao desgaste "psicológico" decorrente daquele rebaixamento, somar-se-iam as perdas políticas derivadas da corrosão da autoridade norte-americana no cenário diplomático mundial.

Dessarte, a fim de legitimarem, perante seus próprios valores democráticos, suas ações velada ou abertamente intervencionistas com respeito às nações não desenvolvidas – o que fazem pragmaticamente em serviço de seus interesses, mas com a alegação sempre presente de que obedecem àqueles valores democráticos –, as elites norte-americanas elaboraram um conjunto de argumentos político-ideológicos calcado nos dois elementos (2) básicos abaixo explicitados.

Com relação às nações subdesenvolvidas do terceiro mundo utilizam-se da tese segundo a qual elas não adotam seriamente os preceitos democráticos e de que nelas impera a corrupção, a ineficiência administrativa e a incapacidade gerencial; isto tanto no âmbito do setor público como na órbita da iniciativa privada.

Justifica-se, dessa forma, todo tipo de intervenção, bem como a adoção aberta da corrupção. Neste último caso estar-se-ia, tão-somente, a usar um instrumento do qual as sociedades "autóctones" servem-se larga e costumeiramente; assim, a corrupção, quanto útil aos norte-americanos, deixa de ser um ato ilícito para transformar-se, dado o movimento ideológico que opera tal metamorfose, num mero expediente mediante o qual se pretende, mais rápida e eficazmente, alcançar os objetivos perseguidos, os quais, por sua vez, já se acham justificados por atenderem aos interesses norte-americanos, interesses estes que sempre poderão ser referidos aos valores democráticos acima apontados. Quanto às demais formas de intervenção, cujo caráter pode ser político, econômico ou militar, vêem-se elas explicadas pela necessidade de se assegurar, em nações que não o fazem suficientemente, o respeito às liberdades e à democracia.

Já o segundo elemento básico ao qual fizemos menção, diz respeito às nações desenvolvidas – basicamente as da Europa Ocidental – que, eventualmente, venham a suscitar algum reparo ou restrição às ações desenvolvidas pelos EUA. Neste caso os norte-americanos alegam que os governos de tais países demonstram-se incapazes de compreender as motivações dos EUA. Assim, os políticos das "nações amigas", dada sua incapacidade para alcançar os reais móveis norte-americanos, mostrar-se-iam desqualificados para julgar as medidas postas em prática pelos EUA ou por seus conglomerados econômicos. Como se observa, neste último caso o movimento ideológico transforma a crítica em incompreensão, eliminando, portanto, a necessidade de os EUA virem a reconhecer um eventual erro ou serem obrigados a admitir a adoção de meios que pudessem ser considerados ilícitos ou ilegais.

De toda sorte, em ambos os movimentos ideológicos aqui descritos (3) sempre comparece a inferioridade do "outro": incompreensão dos parceiros mais desenvolvidos; corrupção e incompetência dos mais atrasados. Justamente neste aspecto reside a fragilidade do arcabouço ideológico acima delineado, pois é esta aparente transposição imediata e grosseira de uma inconteste superioridade material para o plano político que faz os norte-americanos parecerem, aos olhos de muitos de nós, tão cinicamente confiantes e arrogantes. Na verdade, o mecanismo ideológico por eles utilizado nos parece tão elementar que antes de os tomarmos por cínicos, os consideramos ingênuos. Trata-se, não obstante, de um grupo de ingênuos dos mais perigosos, pois suas decisões e métodos chegam a ser absolutamente irresponsáveis; sirva aqui como exemplo a calamitosa ocupação do Iraque, ora a viver um de seus mais sangrentos capítulos.

Assim, independentemente de nossas opiniões e da justeza de nossas análises, duas idéias devem restar fixadas muito solidamente. Em primeiro, os norte-americanos são os dominadores, nós os dominados. Em segundo, o futuro próximo da humanidade encontra-se nas mãos deles; já quanto ao futuro mais longínquo, nada indica que nele venhamos a desempenhar algum papel de relevância. Em face disto, qualquer limitação que puder ser imposta aos EUA sempre será bem recebida, mesmo se vier a ser adotada sob os auspícios da desfibrada e desmoralizada Organização das Nações Unidas.


NOTAS

(*) Cumpre lembrar que a presente crônica foi escrita antes de virem a público as notícias referentes às torturas infligidas a prisioneiros iraquianos por soldados americanos e ingleses. Note-se, ademais, que as repercussões de tais notícias nos EUA, e em especial as dimensões de escândalo que ali elas assumiram, corroboram as idéias esposadas pelo autor deste artigo.

(1) Este apego dos norte-americanos a suas instituições democráticas, assim como com o simbolismo que as cerca, encontra-se tão fundamente firmado que, nos EUA, um golpe de Estado só pode se dar se transcorrer no âmbito da "legalidade". Foi isto que ocorreu no caso da eleição de George W. Bush à presidência da República. As condições conjunturais decorrentes da confusão havida nas apurações foram rapidamente entendidas e manipuladas pelo Partido Republicano de sorte a levar, mediante uma série de decisões judiciais, hábil e fulminantemente arranjadas, seu candidato, que perdeu nas urnas, ao poder supremo da nação. Tudo pareceu se dar dentro da legalidade e o golpe de Estado confundiu-se com um mero golpe de sorte.

(2) Como em toda construção ideológica, elementos efetivamente existentes servem de base às generalizações que passam a ocupar todo o espaço reservado ao real fazendo com que este último veja-se falseado por ser confundido inteiramente com apenas um de seus aspectos. Como já foi repisado à saciedade, o movimento ideológico dá-se, justamente, quando a parte, sendo identificada com o todo, toma o seu lugar e o torna inacessível.

(3) Tome-se, por sua notoriedade, a figura de Jimmy Carter como exemplo dos norte-americanos que não se deixam envolver pelos movimentos ideológicos aqui propostos.
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VERMELHO SOBRE CINZA NUM PALCO VAZIO
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, abril de 2004



Como tem sido fartamente anotado pela crônica política, o PT e o governo Luiz Inácio Lula da Silva mostraram-se despreparados para dirigirem a Nação e incapazes de coordenarem os planos sociais que tentaram implementar. Suas marcas são o desemprego, a queda de rendimentos, os juros elevadíssimos e a estagnação econômica.

Além disso, as promessas de campanha viram-se relegadas ao esquecimento e as lideranças petistas revelaram-se mal-intencionadas, pois distorcem os fatos, buscam encobrir notórias evidências e empregam métodos fisiológicos para alcançar fins políticos escusos.

De outra parte, alguns intelectuais que mantiveram seu apoio à nova orientação do Partido dos Trabalhadores criam verdadeiros arabescos teóricos e patéticos jogos de palavras com os quais pretendem justificar a ruptura com idéias que esposaram por décadas e com as quais erigiram um rico patrimônio ético e político, ora infelizmente abandonado.

De tais malabarismos pseudocientíficos fazem parte não só a proposição de categorias esdrúxulas e inaceitáveis, mas também o estreitamento indevido da discussão, de sorte a deixar de lado fatias inteiras da realidade histórica atual. Fatias estas cuja consideração faria saltar à vista a existência de caminhos alternativos de ação política e econômica, deliberadamente desprezados pelo atual governo.

Assim, nas divagações teórico-filosófico-pragmáticas dos governistas tudo se passa como se suas pífias ações fossem absolutamente irrecorríveis. Experiências como as da Índia, da China, de países do Leste Asiático e da própria Argentina -- colocada ao nosso lado e defronte de nossos narizes -- são descuradas totalmente e nem sequer merecem a mais ligeira menção.

Tal omissão é emblemática, pois, a par de revelar o privilégio total emprestado aos ditames da grande finança, denuncia a evidente intenção de falsear a realidade e ignorar as demais vias abertas ao enfrentamento da crise econômica e social com a qual nos defrontamos.

Politicamente, impõem-se três conseqüências imediatas de tal maneira de agir. Por um lado, a base de apoio popular do governo vai-se corroendo, paulatina, mas continuamente. De sua parte, os aliados políticos do governo Lula aumentam sistematicamente o "preço" cobrado pelo apoio emprestado às medidas que interessam ao Planalto. Por fim, a oposição vê-se amplamente fortalecida e as articulações para a sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva já se acham em pleno desenvolvimento, tendo Fernando Henrique Cardoso e José Serra como seus expoentes maiores.

Enfraquecido e paralisado, o governo federal vê-se, no momento, às voltas com movimentos grevistas do funcionalismo público, com as desacoroçoadas invasões do MST e com crescentes perdas entre a intelectualidade, a militância partidária e os formadores de opinião que o tomaram como o representante fiel dos desvalidos.

Enfim, como avançamos em crônica escrita em outubro de 2003, "do ponto de vista político-cosmológico, o governo Lula representa uma autêntica aberração física, pois começa a terminar antes mesmo de podermos observar seu início" (COSTA, 2003, Construindo o avesso do futuro).

Temos, assim, um presidente, um governo e um partido que conseguem aviltar os velhos, malbaratar crescentes contingentes das novas gerações e dar as costas para a imensa maioria dos trabalhadores.

No correr da última campanha eleitoral o medo irreal de uns poucos exprimia a esperança secular de quase todos. O governo eleito foi incapaz de despertar esperanças e incompetente para semear o medo, ainda que ilusório. Resta-nos exercer sobre o presidente da República a pressão política necessária a fim de fazê-lo efetivar os compromissos assumidos com a nação e com seu próprio passado de migrante e líder operário.
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